Apelo à popularidade e apelo à antiguidade.

A falácia ad populum é o recurso à menção ao número elevado de pessoas que acreditam numa coisa para demonstrar a sua veracidade.

A falácia ad antiquitatem é o argumento pela antiguidade, a tentativa de demonstrar que algo é verdade só porque é antigo. Caem nesta designação os apelos à tradição como argumento.

Adicionalmente, é de notar que estas duas falácias aparecem muitas vezes em associação. Parece ser extremamente apelativo como argumento que se algo é antigo e muita gente acredita (durante todo esse tempo) então é porque tem de ser verdade. Mas como duas falácias não valem mais que uma, pelo contrário, quanto mais falácias uma sequência de argumentação tem mais frágil é, é natural que possamos mostrar recorrendo a contra-exemplos que o facto de uma coisa ser simultaneamente antiga e popular, não quer dizer que esteja correcta de certeza.

Para os que consideram esta exposição desnecessária por ser óbvio, pensem nas coisas que são defendidas com frequência recorrendo a estes argumentos e na quantidade de pessoas que o fazem (senão não era possível o ad populum) e há quanto tempo… Não deve ser assim tão óbvio, e leva a imensa gente enganar-se.

Parece-me que isto é suficiente para investigar um pouco o assunto e mostrar que só por ser antigo e popular algo não é verdadeiro.

Para os que lhes parece que sim, que até é ridículo pensar que tanta gente não pode estar errada tanto tempo  e por oposição ao ditado que diz que não se pode enganar toda a gente o tempo todo (e não pode, há pessoas que se dedicam a tentar saber como podemos saber ainda mais e que tipo de provas são precisas para cada alegação)  mas como dizia, para os que acreditam que muitos não podem estar enganados durante muito tempo, peço que suspendam essa crença durante a duração deste texto e no fim voltem a pensar se chegam à mesma conclusão partindo o raciocínio do principio. Pedido difícil, a parcialidade é algo intrínseco na natureza humana. Mas devemos tentar ultrapassa-la.

Para demonstrar que o uso combinado destas falácias não tem mais força que o uso individual de uma delas poderia apenas seguir um caminho lógico de dizer que uma falácia não serve para justificar outra falácia donde teria sempre de haver algo mais a sustentar a coisa. Alguém poderia argumentar que elas actuam sinergeticamente, ou sei lá,  mas existe um caminho que me agrada muito mais e é muito mais ilustrativo. O de encontrar crenças antigas e populares, que todos hoje podem ver que estão erradas e que são suficientes para concluir que por si só ser popular e antigo não é suficiente. Pelo menos uma.

Como as coisas que vulgarmente são defendidas com este tipo de argumentação nos dias de hoje se mantêm obviamente populares então elas não servem para o meu ensaio . São elas por exemplo, a acupunctura, a astrologia, o espiritismo, a reencarnação, etc. Excelentes exemplos para perceber que o que é antigo e popular não é forçosamente verdade, mas só servem precisamente para quem já compreende que são precisos outro tipo de evidencias para suportar essas crenças.

Vejamos por onde começar… A humanidade tem cerca de 200.000 anos de existência. Durante quase todos esses duzentos mil anos, viveu da caça e de produtos que recolhia da natureza. Não construía habitações sólidas, não sabia proteger-se de inundações previsíveis, não sabia o que eram micróbios, não sabia cultivar a terra, não sabia fazer muito mais que instrumentos de pedra, etc., etc., etc. Desses 200.000 anos, só nos últimos 5000 a 6000 começamos a ter a capacidade de resolver alguns desses tipos de problemas. Saber o que são micróbios por exemplo, é algo extremamente recente, só há cerca de 300 anos foram vistos pela primeira vez. 300 anos serão cerca de 0,0015% do total da existência da humanidade. Podemos especular que tipo de crenças terão existido durante a maioria destes 200.000 anos e quanto tempo terão durado, mas infelizmente apenas posso apontar a plausibilidade de durante tanto tempo terem havido certamente crenças populares e duradoiras em que hoje ninguém acreditaria.

Havia doenças. Como fariam para as tratar? Em que acreditariam? Eu tenho uma ideia, mas não a posso provar. Por isso adiante. O que nós não sabemos não serve para provar nada. Mas é importante colocar as coisas em perspectiva e por isso referi o tempo de antiguidade que a evidencia fóssil dá à humanidade. Claro que os criacionistas de Terra Nova, sejam cristãos ou islâmicos, e que diga-se são uma data deles (ver nos Estados Unidos por exemplo) não só não acreditam na teoria da evolução, como não acreditam que a humanidade e todo o planeta Terra tenha mais do que os 5000 ou 6000 mil anos em que sabemos que soubemos construir e  escrever. Mas como existem muitos criacionistas hoje em dia e alguns também podem estar a ler isto, apesar de ser uma crença antiga (o antigo testamento é das compilações escritas mais antigas que há e o criacionismo de terra jovem deriva da sua interpretação literal), não serve para o meu propósito. Mas poderia servir e deverá servir para todos os que não forem criacionistas de Terra Jovem, o que felizmente posso confirmar que em Portugal e Brasil não é assim tão frequente. Eles acreditam naquilo há uma data de tempo.

É preciso então procurar entre as coisas que estão suficientemente bem documentadas como crença, para além de estarem desacreditadas hoje em dia ( e esta é a parte difícil), aquelas que duraram muito tempo e tiveram muitos adeptos.

Uma que devia servir perfeitamente é a antiga crença de que o Sol andava à volta da Terra ou de que a Terra era plana. São crenças que estão documentadas em textos antigos e que caíram com a evolução do conhecimento. Sabemos que nem o Sol nem a Terra estão num hipotético centro do universo e que a Terra não é plana. De facto podemos verificar que cada vez temos mais respostas e sabemos fazer mais coisas. Mas como também ainda existe quem pense que a Terra é plana (ver The Flatearth Society no google), apesar de já serem poucos e porque se pode dizer que se escolhermos o ponto de vista Terrestre se vê O Sol a girar à volta da Terra –  apesar de haver infinitamente mais pontos de referencia que mostram a Terra  a andar à volta do Sol – continuo a ter de procurar outro exemplo em nome do rigor. Mas se por ventura o meu caro leitor chegou ao ponto em que pensa “por muita gente que tenha acreditado nisto durante milénios, eu posso ver que isto não é de todo verdade” então chegou ao ponto em que pode também ver que não é por algo ser antigo e popular que é garantidamente verdade. Para os outros continuem comigo.

Pensei então que o ideal para encontrar a minha crença popular e milenarmente duradoura seria procurar entre as crenças do primeiro império milenar que está bem descrito na nossa história. O Egipto Antigo. E não me desapontou, lá encontrei o que precisava.

O Egipto antigo como entidade politica e cultural durou vários milénios, cerca de 3000  anos, até a dinastia Ptolemaica perder o poder para os romanos. O Egipto foi governado por Faraós que representavam igualmente a divindade na terra. A crença era que o Faraó era uma espécie de dualidade entre um homem e um Deus e não podia ser julgado por homens – a sua palavra era a dos deuses.  A teocracia acentuou-se ainda mais quando passaram a ser os padres a dizer o que era a vontade dos deuses directamente para povo – eram politeístas (foram durante milénios, excepto durante um muito curto período de monoteísmo). De resto a sua mitologia religiosa está praticamente morta, com o monoteísmo a dominar em quase todo o mundo. Acreditavam que o coração era o centro do pensamento e das emoções em vez do cérebro e que o coração seria pesado numa balança de dois pratos contra uma pena após morrerem. Quem é que ainda acredita nisto? Adiante… Acreditavam que a Terra era plana e personificada no deus Geb, mas já vimos que ainda há muitos que acreditam… A sua medicina era famosa no seu tempo para além fronteiras (e justamente  permitam-me acrescentar, já que as crenças europeias que formavam a medicina na idade média durante milénios, e milénios mais tarde, eram bem piores) mas a esperança média de vida rondava os 30 anos para os homens e 35 para as mulheres. A mortalidade infantil era de 1 em cada 3 crianças. Era aos olhos dos dias de hoje, rudimentar, primitiva e insuficiente… Quem quisesse voltar a usar a medicina Egípcia encontraria coisas boas como fazer pensos com mel, mas teria de se submeter a encantamentos como parte da cura e a tomar remédios que dariam os mesmos sintomas da doença, já que acreditavam em curar  “similar com similar” como na homeopatia (outra prática popular que não vale mais que placebo), mas sem as diluições infinitesimais para não haver toxicidade e com muito mais imaginação, como usar ovos de avestruz para tratar cabeças partidas.

As raízes do método cientifico, segundo alguns historiadores podem já ser encontrados no antigo Egipto e de resto as inovações desse povo são mais que muitas. Imensas coisas em que eles próprios protagonizaram revoluções em relação ao que se fazia nos 200.000 anos anteriores como a agricultura e pecuária, a engenharia civil, a arquitectura e a cirurgia… Sem assépcia e sem anestesia… Mas coisas que hoje são… Antigas e ultrapassadas. É preciso encontrar algo mais para justificar uma crença do que a antiguidade ou a popularidade. Senão ainda fazíamos tudo da mesma maneira e acreditávamos nas mesmas coisas. É importante notar que eu admiro o antigo Egipto por aquilo que ele representou na altura e ainda hoje me maravilho com a sua arte e sentido de estética. Não estou a dizer que tudo o que é antigo não presta. Ou que tudo o que é popular não presta. Apenas que ser antigo, ter sido acreditado por milhares de pessoas ao longo de milhares de anos não chega para justificar uma crença.

Mas apesar de por esta altura poder ter conseguido ter já apresentado razões suficientes para a maioria das pessoas posso ainda não ter chegado a todas as que são minimamente razoáveis (e já que quanto às irrazoáveis não há nada a fazer).

Mas foi de facto no Antigo Egipto que encontrei algo que eu penso será convincente o suficiente para todos. Algo que é tão forte que por si só mostra a falaciosidade de um ad populum + ad antiquitatem.

A  pratica que encontrei que satisfez as minhas exigências – por achar que será praticamente aceite por todos os seres humanos mentalmente saudáveis – por isso considerada como brutalmente errada e que assenta numa crença milenar que atravessou todos os séculos até quase aos dias de hoje, sobrevivendo o próprio Egipto Antigo, é o sacrifício de animais e… Pessoas.

Várias populações, em várias partes do planeta, durante anos, milhares de anos, sacrificaram animais e seres humanos para satisfazer deuses. É um facto que é uma crença complexa que implica outra crença como achar que um deus satisfeito nos vai compensar, mas mesmo este pormenor só a fortalece como um exemplo excelente para mostrar que antiguidade e popularidade não são um bom critério. Através dos milénios, para agradar a deuses das mais diversas cores e formas, foram arrancados corações, queimados na fogueira, enterrados vivos, estropiados, tanto homens, como  mulheres e crianças. Esta aberração doentia foi regra em mais sítios e mais tempo que provavelmente qualquer outra crença, correcta ou não. Está descrita desde o antigo Egipto até aos textos de religiões actuais como o Judaísmo ou o Islamismo. Passou  intacta na sua forma através de religiões, políticas, povos ou terras.

Hoje desconheço qualquer povo que ofereça animais ou seres humanos aos seus deuses. O sacrifício de animais ainda durou mais que o sacrifício de humanos (admito que felizmente, mas não sem um peso na alma), mas hoje podemos todos concordar que não adianta nada sacrificar pessoas vivas ou animais com a morte para agradar a deuses. É difícil dizer quando isso acabou, se é que acabou de todo – refiro-me ao sacrifício de animais. Sabemos que a mutilação como mandamento de um sistema de crenças ainda existe nos seres humanos. Os exemplos são vários e é desnecessário começar a fazer uma lista.

Sinceramente duvido que quem tenha chegado até aqui continue a considerar que a popularidade ou número de pessoas que suportam uma crença ou uma prática, mesmo quando associada a uma longa duração no tempo, seja um argumento que vale por si só.

É de facto preciso sustentar as nossas crenças em justificações mais fortes, justificações que assentem em matéria de facto quando possível ou indirectamente por inferências sólidas noutros casos.

De facto, qualquer dos exemplos com que comecei não têm evidencias fortes das suas afirmações. A astrologia ou faz afirmações vagas e intestáveis ou erra. A acupunctura não vale mais que placebo e o espiritismo/mediunismo não tem ponta por onde se pegue. No entanto têm imensos seguidores que quando faltam outras evidências (e faltam) recorrem a estas. Mas não vão mais longe por isso.

3 comentários

  1. Excelente!
    Um exemplo de como o apelo à antiguidade não passa de uma falácia, é o triste fim que todos os anos várias pessoas têm porque insistem em recorrer a ditados e crendices antigas sobre como seleccionar os cogumelos comestíveis. Coisas que foram conservadas ao longo de gerações apesar de não possuírem qualquer fundo de verdade.

  2. É verdade. Excelentes exemplos.

  3. Quando li estas 2 falácias, lembrei-me de 2 situações em que elas foram usadas e abusadas para defender a opinião errada.

    Escravos: quem defendia a existência de escravos defendia com base na popularidade (entre brancos), e na antiguidade (dando até como “prova” da vontade de Deus, passagens da Bíblia).

    Voto Feminino: muitos dos que defendiam que as mulheres não deviam votar, baseavam-se entre outras, nessas duas falácias. Diziam que por toda a história tinha sido assim (apelo à antiguidade), e que popularmente os homens é que devem decidir as coisas (claro que “popular” queria dizer entre muitos que já votavam… ou seja, homens).

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