Os mais vendidos livros de “Ciências”

No jornal Expresso é possível encontrar um conjunto de listas com o top de livros mais vendidos da semana, onde se pode ler o seguinte (cliquem na imagem para conseguirem ler):

Destes livros – quase todos com títulos que levam a pensar pouco em ciência – aqueles que saltam particularmente à vista são o “Astrologia e Guia do Amor 2012”, o “Do Eu Solitário ao Nós Solidário”, o “Pai-Nosso que estais na Terra” e o último, denominado “Dia-a-Dia com os Anjos”.

 

Astrologia e Guia do Amor 2012 – Paulo Cardoso

 

Começando pelo primeiro livro desta última lista, convém que nos perguntemos o que é a Astrologia.

Uma pesquisa rápida na internet ensina-nos que a Astrologia é um sistema de crenças que sugere que fenómenos astronómicos influenciam a vida das pessoas. Como é isso possível? Parece que isso não é relevante para os praticantes desta ancestral arte. Ainda que predecessora de uma ciência – a Astronomia (do mesmo modo, aliás, que a Alquimia foi da Química) -, a Astrologia nunca deu razão nenhuma para ser chamada de ciência, caindo no âmbito das pseudo-ciências: não faz uso do método científico e considera que testar as suas hipóteses não é necessário.

Seja como for, já houve estudos que tentaram determinar, à luz da ciência, a veracidade de tal prática: em 1985 Shawn Carlson realizou um estudo com 28 astrólogos considerados reputados, aos quais foi sugerida a elaboração de um mapa astral a mais de 100 pessoas. Comparando-se os mapas astrais com os resultados de testes psicológicos, o autor chegou à conclusão de que não havia qualquer relação entre os mapas astrais e as personagens dos indivíduos, tendo inclusive escrito o seguinte na conclusão: “estamos agora em posição de mostrar um caso surpreendentemente forte contra a astrologia natal, do modo como é praticada por astrólogos reputados. Foi tido grande cuidado para que a experiência não estivesse enviesada e para garantir que a astrologia tivesse todas as hipóteses razoáveis de ser bem sucedida. Ela falhou.”.

Ou seja, começando logo pelo primeiro livro: NÃO É CIÊNCIA.

 

Pai-Nosso que estais na Terra

 

Praticamente toda a gente, crente ou não crente, reconhece que esta frase corresponde ao início de uma oração cristão (onde “Terra” é substituída por “Céu”).

Olhando simplesmente para o título, é rápida a associação entre o livro e a espiritualidade ou religião, que não pertencem ao domínio científico. Como os títulos podem enganar, contudo, convém ir procurar alguma informação sobre este. Ora, lendo a sinopse do livro pode-se encontrar o seguinte:

“José Tolentino Mendonça, teólogo e poeta (…) ousa “abrir” o Pai-Nosso a crentes e a não-crentes, e aponta novas chaves para uma leitura espiritual deste texto que constitui o coração do cristianismo. (…) O leitor é convocado para uma viagem interior que não esquecerá.”

Sendo irrelevantes as crenças do leitor, este não é um livro sobre ciência: é um livro espiritual, que em qualquer livraria é encontrado nas estantes correspondentes ao tema “Esoterismo” e não ao tema “Ciências”. A não ser que, assim como nesta lista, esteja mal arrumado.

Assim como o primeiro livro: NÃO É CIÊNCIA.

 

Do Eu Solitário ao Nós Solidário

 

Recorrendo ao site da Wook para ler a sinopse deste livro, deparamo-nos com o seguinte:

“Conversa intimista e sem preconceitos sobre Deus, o Homem e o Mundo. Divagações e reflexões sobre a actualidade com viagens ao passado para melhor podermos escolher um caminho de futuro.”

As conversas sobre a existência ou não de deuses abunda atualmente; chamar-lhe a esta uma questão científica é que já é um tanto exagerado.

A ciência baseia-se na existência de dados experimentais que permitem a elaboração de hipóteses que, caso confirmadas, podem inclusive dar origem a Teorias que expliquem determinados fenómenos. Não existe nenhum facto, nenhum dado físico e objetivo que nos permita trabalhar sobre a questão da existência de um ou outro deus. Não havendo nenhuma evidência sobre a qual trabalhar, a ciência não pode afirmar quer “deus existe” quer “deus não existe”. Aquilo que a ciência tem que fazer – e o que parece ofender muitos crentes – é abster-se de considerar a existência ou não de um ser superior nas suas equações. E isto não é por uma questão de orgulho, teimosia ou ateísmo da classe científica (até porque nem todos os cientistas são ateus): deve-se somente ao facto, repito, de nenhuma evidência física apontar para a existência de uma entidade divina que deva ser tomada em consideração.

Concluindo sobre este terceiro livro: NÃO É CIÊNCIA.

 

Dia-a-Dia com os Anjos – Marta Cabeza Villanueva

Este livro é, na minha opinião, o melhor da lista.

A sinopse deve ser colocada na íntegra:

“Os Anjos são mensageiros divinos, seres de luz constituídos por energia superior. Estão sempre presentes na nossa vida, guiando, apoiando e protegendo-nos; normalmente, fazem-no através da organização de acontecimentos nas nossas vidas, criando aquilo a que chamamos «coincidências». Mediando entre a divindade e o homem, os Anjos ajudam-nos a criar um mundo melhor. Este livro convida-nos a aprender como «jogar» com os anjos. Através deste jogo – que não passa de uma forma inocente e desprendida de comunicar com eles – poderemos aprender a interpretar as mensagens destes nossos guias celestiais.”

A sinopse começa com um juízo de facto sobre algo cuja existência não é comprovada: fala de anjos, que são seres que pertencem ao domínio da mitologia. Nunca ninguém viu um anjo, nem algo que indicasse a sua existência, tal como um fóssil.

Continuando a ler a frase apercebemo-nos, contudo, de que encontrar um fóssil de um anjo seria difícil: eles são feitos de luz. Gostaria de perguntar à autora com base em quê é que ela chegou a esta conclusão. Porque se este livro é científico, parece-me legítimo que questionemos os métodos que foram usados para se chegar a essa e outras conclusões.

Apesar de não sabermos como a autora sabe que os anjos são feitos de luz, sabemos ainda que os anjos são constituídos por uma energia superior. Ora, sendo os anjos feitos de luz constituída por energia superior, urge a questão: O que é essa energia superior? Será radiação com frequência superior à da radiação gama? Não sabemos.

A sinopse continua, dizendo que os anjos estão sempre presentes e, melhor ainda, que nos é possível comunicar com eles.

Agora poderiam dizer que eu estou a falar sem saber simplesmente porque estou a olhar para um livro apenas pela sua sinopse mas, neste caso, parece-me legítimo que o faça. As afirmações que eu fiz sobre nunca se ter encontrado anjo nenhum são verdadeiras, assim como, tanto quanto se sabe, é verdade que os anjos pertencem ao domínio mitológico. Como tal, a autora trabalhou baseada em não-evidências, para atingir resultados (e aqui refiro-me à comunicação com os anjos, suponho que isso seja um resultado) que não podem ser repetidos por outras pessoas, coisa que tem que acontecer para que algo possa ser chamado de ciência.

Uma vez mais e para terminar: isto NÃO É CIÊNCIA.

 

Dado que livros que tratam destes temas são considerados ciências, parece-me até irrelevante abordar os restantes da lista, ainda que esses não sejam também propriamente livros a incluir na estante dos livros de ciências (salvo “O Segundo Livro da Ignorância Geral” e o “50 Ideias – Matemática Que Precisa Mesmo Saber”).

Parece-me importante fazer este reparo relativamente à classificação dada a estes livros pois, dada já a confusão que existe sobre ciência, é triste que a comunicação social – cujo dever é informar a sociedade – contribua para a desinformação.

Numa sociedade baseada nas ciências e tecnologias, um mau conhecimento do modo como a ciência funciona é uma porta aberta para se ser vigarizado. Como tal, para além de ser importante explicar como funciona a ciência, é importante que, antes de mais, se faça uma distinção entre aquilo que é ciência e aquilo que não é ciência.

Neste aspecto o Jornal Expresso, assim como a Astrologia no estudo mencionado anteriormente, falhou. Ainda que este estudo da frequência de venda de livros tenha sido feito por outra empresa que não o jornal em questão, cabia ao pessoal que nele trabalha assegurar-se da não existência de incoerências e de informações com o potencial de enganar, ainda que não deliberadamente, os leitores do Expresso.

10 comentários

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  1. Temos de ver o copo meio cheio. Em dez livros, um é mesmo de ciência (interessante mas muito ligeiro/resumido).
    Para o Expresso, a taxa de acerto de 10% até é bem boa.

  2. “Apesar de não sabermos como a autora sabe que os anjos são feitos de luz, sabemos ainda que os anjos são constituídos por uma energia superior.”

    Que arrogância Nuno! Se a autora diz que são feitos de luz é porque são, é o poder da intuição! 😛 (Bazinga)

    Reparem que eles no título colocaram ciências e não ciência, acho que isso significa que para eles é tudo igual, ciência a sério e “ciências” exotéricas/ocultas. De resto, ver livros new age no top dos mais vendidos não me surpreende. As pessoas adoram respostas simples e especialmente respostas que as façam sentir especiais e no centro do Universo, o que conjugado com a falta de literacia científica dá o triste resultado que tantas vezes presenciamos.

  3. Obrigado a todos pelos comentários 😀

    Manuel Martins, não conheço o suficiente dos autores dos livros de teologia para dizer o que quer que seja, mas apenas o suficiente para saber que os livros deles não são, de certeza, ciência. Se os próprios o afirmam, excelente; gente a dizer que faz ciência para enganar o público é o que não falta. Não me parece ser o caso, e é perfeitamente possível que esses livros, dentro da área em que se enquadram, sejam bastante bons.

  4. Também reparei nessa “não-ficção”! :p

    Isto seria uma boa piada, caso não o fosse!
    E quem ler esta lista vai ficar com uma ideia completamente distorcida!
    Já é tão difícil fazer as pessoas separarem ciência de pseudos, só falta um grande jornal nacional meter o pé nesta tão grande poça…

  5. Ninguém reparou que no 1º lugar de “Não Ficção” está “O Céu Existe Mesmo”?

    • Luis Carrilho on 05/12/2011 at 03:29
    • Responder

    realmente!!! só falta a colecção do Harry Potter por lá!

    nem parece próprio do Expresso (que costumo ler) uma gaffe deste nivel!

    parabéns pelo achado 😀

    • Manel Rosa Martins on 05/12/2011 at 01:08
    • Responder

    Olá Nuno, excelente Post, parabéns.

    talvez o livro de introspecção de inspiração Cristã possa estar numa classificação de Teologia ou até mesmo de Filosofia, agora colocar em Ciências é uma total falta de respeito até pelo próprio autor, cujas reflexões merecem, em fórum de Filosofia e de Ética Cristãs, uma consideração elevada, validada pelas pessoas que discordam mas que não se coíbem de elogiar a postura tolerante e aberta ao diálogo do autor.

    O próprio autor num debate sequente ao convite à Oração espiritual, fez questão de informar uma participante que essa reflexão não tem qualquer carácter científico, pois, segundo as suas palavras (que depreendo inspiradas no actual Papado) mas outrossim o intuito de despertar a atenção para o falta de Ética que constituem os ataques pessoais no debate político nacional.

    Ou seja, o autor separa Ciência de Reflexão Filosófica e de Reflexão Espiritual, sendo ainda que separa o debate público sobre o Poder Executivo do Poder Judicial.

    De facto, o Expresso errou.

    Possivelmente a azáfama própria deste início de época de festejos, necessidade de fechar a edição ou outra incúria estarão na base destes equívocos.

    De facto, o Natal mercantilista é ele todo um grande equívoco.

    E sim, claro que há cientistas que são crentes das mais diversas religiões. Aliás os maiores nomes da Ciência, Galileu, Newton, Darwin, e até Einstein em algumas fases da sua vida, todos os do Grupo de Solvay com a excepção de Paul Dirac, eram ou profunda ou simplesmente religiosos.

    E nós como “ocidentais” até temos tendência a esquecer-mo-nos de muitos e muitas cientistas doutras regiões do mundo com crenças muito diversas, incluindo as animistas.

    Bem, foi excelente este teu levantamento, foi um post muito bem inspirado (inspiração terrena) :)) e aguardo com interesse os teus posts seguintes, que espero que sejam muitos.

    Um abraço

  6. Muito bom Nuno, bem apanhado.

    Depois desta ciencia toda, fica-se habilitado a um diploma em Disparates, com mestrado em cabeça dura e doutoramento em falta de educação…………..LOOL

    • Marília Peres on 05/12/2011 at 00:46
    • Responder

    Obrigada Nuno,
    Alguém deve fazer uma pesquisa por palavras e se aparecer a palavra “Energia” ou “Átomo” ou mesmo “astro”, deve ser ciência. E ainda por cima são pagos para isto!

  7. Eu parece-me que esses livros que referes cabem todos na secção “Ficção” 😉

    As pessoas ao lerem que estes livros estão na secção ciência, ficam obviamente com uma ideia errada do que é a ciência.
    Depois admiram-se da literacia científica ser baixa… 🙁

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