Colisão entre Anãs Brancas na Origem das Supernovas de Tipo Ia ?

Em Agosto do ano passado, neste artigo, descrevi como ocorre uma supernova de tipo Ia. Na altura a motivação foi o aparecimento de uma supernova deste tipo na galáxia M101. Com um pico de brilho de magnitude +9.9, no dia 13 de Setembro, foi uma das supernovas extragalácticas mais brilhantes das últimas décadas. No artigo, expliquei que, ao contrário do que acontece com supernovas de tipo II (e Ib e Ic), para as quais várias estrelas progenitoras (as estrelas que explodiram dando origem à supernova) foram já identificadas em imagens de arquivo, para as supernovas de tipo Ia não foi identificada nenhuma estrela ou sistema de estrelas progenitor. Estudos teóricos deixam no entanto poucas dúvidas de que as supernas de tipo Ia resultam da explosão termonuclear de uma anã branca, resultado do despoletar da fusão descontrolada de carbono no seu interior. Este processo não pode ocorrer em anãs brancas isoladas, por isso é também consensual que são sistemas binários contendo pelo menos uma anã branca que dão origem a este tipo de supernova. O que não é consensual é a natureza da estrela companheira. Existem dois cenários possíveis:

Cenário 1. A companheira é uma estrela normal, semelhante ao Sol ou uma gigante vermelha, mais evoluída. Neste cenário, o material da estrela companheira escapa do seu lobo de Roche, e é capturado pelo campo gravitacional da anã branca, acabando por colidir com a superfície da mesma. Este material adiciona peso às camadas exteriores da estrela e aumenta a pressão no seu interior. Ultrapassado um limite crítico de pressão e temperatura interna, inicia-se a fusão explosiva do carbono e forma-se a consequente supernova de tipo Ia, destruindo completamente a anã branca. Um pormenor importante: a anã branca tem de ser suficientemente maciça à partida para incrementar numa escala de tempo razoável a sua massa até próximo do limite de Chandrasekhar (1.4 massas solares), pois só para este regime de massa é que a pressão e temperatura internas é suficiente para desencadear a fusão explosiva do carbono. Um problema notado consiste no facto de poderem não existir anãs brancas maciças suficientes para explicarem a frequência das supernovas de tipo Ia.


(Cenário 1. Uma anã branca em órbita de uma companheira normal. O gás da companheira é lentamente capturado pela anã branca até que a fusão explosiva do carbono é desencadeada, dando origem à supernova. Crédito: NASA/CXC/M. Weiss)

Cenário 2. A companheira é outra anã branca. Neste cenário, as estrelas orbitam cada vez mais próximo e acabam por colidir (vejam mais abaixo). De acordo com simulações a colisão dá origem, por breves instantes, a uma estrela única, mais maciça, rodeada de um disco de material que rapidamente é capturado. Estes estudos apontam para que o aquecimento e aumento de pressão provocados pela queda desse material na estrela provoquem a ignição do carbono e a sua fusão explosiva, dando origem à supernova. De notar que neste cenário as anãs brancas em causa podem ser menos maciças do que no caso anterior, o que aumenta significativamente o número de sistemas passíveis de dar origem a uma supernova de tipo Ia.


(Cenário 2. Duas anãs brancas num sistema binário perdem gradualmente energia orbital e acabam por colidir. A fusão explosiva do carbono é despoletada rapidamente no interior da estrela que se forma brevemente após a colisão. Crédito: NASA/GSFC/D. Berry)

Durante muitos anos, o cenário preferido (por razões cientificas obviamente) dos astrofísicos foi o primeiro. No entanto, recentemente várias linhas de investigação parecem apontar na direcção oposta de forma muito convincente. De facto, o cenário 2 poderá estar na origem da grande maioria das supernovas de tipo Ia ao passo que o cenário I poderá explicar algumas supernovas deste tipo com características atípicas, por exemplo, luminosidades anormalmente elevadas. Os trabalhos recentes que descrevo em seguida são um bom exemplo desta provável mudança de paradigma.

Os astrofísicos Carles Badenes (Universidade de Pittsburgh) e Dan Maoz (Universidade de Tel-Aviv), tentaram responder a uma questão aparentemente simples – “Será que existem sistemas binários em que ambas as estrelas são anãs brancas em número suficiente para explicar a frequência observada de supernovas de tipo Ia?”. A resposta que obtiveram foi positiva. Os autores estimaram que, na nossa galáxia, o número de tais sistemas binários é suficiente para dar origem, em média, a uma colisão por século. Este número é semelhante à frequência de supernovas de tipo Ia observada para galáxias semelhantes à nossa.

Mas como é que os autores estimaram este número? O processo, apesar de conceptualmente simples, é extremamente trabalhoso. A ideia consiste em contar quantos destes sistemas binários existem numa vizinhança do Sol e extrapolar o seu número para a totalidade da galáxia. Depois é necessário determinar para estes sistemas, em média, quanto tempo decorre desde a sua formação até à colisão das estrelas. O número de sistemas e o tempo necessário para a ocorrência de uma colisão permitem então estimar a frequência das colisões na nossa galáxia.

Para determinarem o número de sistemas na vizinhança do Sol, os autores utilizaram dados provenientes do Sloan Digital Sky Survey (SDSS), um projecto que procedeu a um censo do céu inteiro recolhendo informação básica e espectros de milhões de objectos astronómicos. No meio deste mar de informação os autores identificaram cerca de 4000 anãs brancas próximas. Para cada uma delas, usaram espectros para detectar variações na sua velocidade radial (ao longo da nossa linha de visão) que indiciassem a presença de uma estrela companheira e permitissem determinar as suas características.

Nos casos em que a companheira era também uma anã branca, os autores utilizaram a Teoria da Relatividade Geral para determinar quanto tempo passaria até as estrelas do sistema colidirem. De facto, devido à elevada velocidade orbital e fortes campos gravitacionais das anãs brancas, um tal sistema binário dissipa energia sob a forma de ondas gravitacionais. Isto não é ficção, foi demonstrado experimentalmente com observações de um sistema binário com dois pulsares (estrelas de neutrões). Este trabalho resultou, em 1993, num prémio Nobel atribuído aos investigadores da Universidade de Princeton, Russell Hulse e Joseph Taylor. O resultado dessa dissipação é a perda gradual de energia orbital das estrelas. As estrelas ficam cada vez mais próximas e orbitam o centro de gravidade comum cada vez com maior velocidade. Isto aumenta a emissão de ondas gravitacionais, resultando numa aproximação ainda maior, … , um ciclo vicioso que termina com a colisão das duas estrelas numa escala de tempo relativamente curta (dezenas de milhões de anos) após a formação do sistema. Com os dados do SDSS e observações subsequentes, os autores confirmaram a presença de 15 sistemas binários formados por duas anãs brancas na amostra original de 4000, traduzindo-se este número na frequência referida de uma colisão por século. Podem ver a notícia e o artigo aqui e aqui, respectivamente.


(Na imagem vêem-se 99 das 4000 anãs brancas estudadas por Badenes e Maoz – os objectos azuis no centro das imagens. Crédito: Carles Badenes e equipa do SDSS-III)

Brock Russell, da Universidade de Maryland, College Park, é o autor principal de um outro estudo que explora outra particularidade destes sistemas binários para determinar a natureza da estrela companheira. No cenário I, se a estrela companheira for uma estrela normal, é de esperar que esta emita para o espaço material através de um vento estelar. Estes ventos estelares são particularmente densos (transportam muito material) em estrelas mais evoluídas como gigantes vermelhas, ou em supergigantes. Ora, quando a anã branca explode, o material em expansão deveria colidir a alta velocidade com este material que circunda a estrela companheira, na realidade o sistema completo, e fazê-lo emitir brevemente raios X. Russell e os colegas utilizaram observações de 53 supernovas de tipo Ia realizadas com o telescópio de raios X (designado por XRT) a bordo do observatório SWIFT (originalmente desenhado para observar explosões de raios gama) para tentar detectar a dita emissão de raios X. O resultado foi negativo, implicando que as estrelas companheiras das anãs brancas que explodiram nestas supernovas não poderiam ser supergigantes ou mesmo gigantes vermelhas de tamanho mais modesto.


(O observatório SWIFT da NASA. Crédito: NASA/Goddard Space Flight Center/Swift)

Um estudo complementar, liderado por Peter Brown da Universidade do Utah, Salt Lake City, utilizou também dados obtidos com o SWIFT, desta vez com outro instrumento sensível no ultravioleta (designado por UVOT), que observou 12 supernovas de tipo Ia menos de 10 dias depois da explosão, numa fase muito precoce da supernova portanto. Nesta fase, se a companheira for uma estrela normal de maior dimensão, a onda de choque da supernova deve comprimir fortemente as camadas exteriores da estrela, aquecendo-as e fazendo-as emitir radiação ultravioleta. Os autores não detectaram este tipo de emissão em nenhuma das 12 supernovas observadas, reforçando a ideia de que as estrelas companheiras são pequenas, semelhantes ao Sol ou de menor dimensão. Os artigos de Russel e Brown serão publicados no início de Abril, respectivamente nas revistas, The Astrophysical Journal Letters e The Astrophysical Journal. Entretanto podem ver a notícia aqui.

Paralelamente a estes estudos, a descoberta da supernova SN 2011fe na M101, referida no início deste artigo, numa fase muito inicial da explosão, permitiu realizar observações com uma sensibilidade sem precedentes, dada a proximidade relativa da galáxia. Observações realizadas com o UVOT do SWIFT não detectaram qualquer excedente de radiação no ultravioleta, tal como Brown tinha observado nas suas 12 supernovas, e reforçando as conclusões do seu estudo. De facto, neste caso, as observações têm qualidade suficiente para concluir que a estrela companheira será forçosamente mais pequena do que o Sol. Um outro trabalho ainda não publicado, liderado por Alicia Soderberg do Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics, e utilizando dados também obtidos com o SWIFT, sugere mesmo que a explosão só poderia ter sido causada pela colisão de duas anãs brancas.

A identificação dos sistemas progenitores das supernovas de tipo Ia não é simplesmente um problema interessante em astrofísica. As suas implicações são importantíssimas, por exemplo, para a cosmologia. De notar que foi com base na assumpção de que a luminosidade máxima das supernovas de tipo Ia é constante (a menos de pequenas correcções entretanto compreendidas) que foi possível determinar que o Universo está a acelerar a sua expansão e deduzir a existência da chamada “energia negra”.

3 comentários

  1. Excelente artigo! 😉

  2. Eis uma das belezas da ciência: a busca natural pela não-superficialidade e a tendência ao auto-ajuste -sendo esta, muitas vezes, confundida com fragilidade e/ou “erros” científicos. Penso que existe uma diferença sutil entre erro e equívoco.

    O artigo do Luís? Este dispensa comentários. 😉

    Muito bom!

    😀

  3. Parabéns e muito obrigado por publicarem essas informações. Esse é o único blog que eu acesso com frequência e depois de ler esse texto me senti no dever de comentar.

    Abraços e tudo de bom.

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