Neil Armstrong e o Lugar do Início

Entre a pegada fossilizada do Australopithecus afarensis – o hominídeo que viveu parcialmente nas árvores, mas já era capaz de caminhar como nós – e a pegada de Neil Armstrong na Lua, a 20 de julho de 1969, decorreram 3.7 milhões de anos.

Se descer das árvores e caminhar de forma ereta pudessem ser isolados num único momento histórico, então talvez também se dissesse que um certo dia, há muito, muito tempo, um hominídeo dera um pequeno passo, mas um salto de gigante.

E também gosto de imaginar o momento longínquo no futuro em que descendentes dos seres inteligentes que outrora se guerrearam na Terra honrarão as pegadas de Neil Armstrong como a marca de um novo «Lugar do Início», para citar o nome de um belo livro da escritora de ficção científica Ursula K. Le Guin.

Lugar do Início: o início do triunfo popular da Ciência sobre a superstição e do conhecimento sobre a ignorância, o lugar de Armstrong e das suas primeiras pegadas.

Depois das missões Apollo e da visão única e esplendorosa do nosso «pálido ponto azul» de Carl Sagan, Terra e Lua passariam a ser pequenas árvores de onde poderíamos descer e explorar os imensos campos cósmicos diante de nós. E a esperança de o conseguirmos iria parecer, também, infinita.

Armstrong morreu ontem, dia 25 de agosto, 43 anos e 35 dias após ter proferido a célebre frase «Um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a Humanidade».

Um lugar de destaque no panteão destes novos navegadores não era honra que lhe interessasse muito. Foi o primeiro na Lua, mas nunca deixou de ser um homem muito terra-a-terra. Quando lhe perguntaram sobre as pegadas que deixou na Lua, respondeu: «Espero que um dia destes alguém suba lá e as apague». E sobre a própria Lua: «É um sítio muito interessante para se estar. Recomendo-o».

Morreu aos 82 anos sem ter podido ver concretizada a promessa de uma nova era de descobertas e explorações e pegadas: três missões canceladas logo em 1970, programa definitivamente fechado em 1972 pelo presidente Nixon, mais preocupado em financiar a galopante guerra no Vietname; ainda testemunhou a aventura dos vaivém e das sondas-robô, mas não chegou a ver seres humanos em mundos extraterrestres.

Da série «Suicídios de astronauta», do fotógrafo Neil de Costa

A Ciência criou o astronauta, a Economia matou-o

As missões Apollo só foram possíveis graças aos cientistas, mas foram os políticos a fornecer o combustível. Quando os soviéticos foram vencidos e a corrida deixou de ser politicamente recompensadora, as missões foram canceladas. Terminara a era de ouro da NASA e de astronautas como Armstrong.

Com o programa dos vaivém cancelado após quase trinta anos de serviço (1982 – 2011) e os planos de uma nova missão tripulada à Lua abandonados devido a cortes orçamentais, o fotógrafo norte-americano Neil de Costa – o mesmo nome próprio que Armstrong – imaginou a figura de um astronauta corroído pelo dilema de uma existência sem sentido.

Neil criou então uma série de fotografias através das quais procurou encenar a depressão e o subsequente suicídio do astronauta.

Obviamente nada mais do que uma metáfora, mas o próprio Armstrong sabia muito bem que os tempos pioneiros de aventura e exploração humana no Espaço podiam estar perdidos para sempre. Na última entrevista que deu, em maio deste ano, falou na NASA como um dos investimentos públicos de maior sucesso em motivar os estudantes.

«Mas é triste», considerou com a expressão tranquila de sempre, «ver o programa a caminhar numa direção em que a motivação e o estímulo que dá aos jovens é já tão reduzido».

«A Casa Branca e o Congresso têm uma visão própria do que deve ser o futuro da NASA e a instituição é empurrada para uma ou outra direção, à medida que um lado procura impôr ao outro a sua visão do caminho que deve seguir».

A entrevista, de meia-hora, pode ser acompanhada na íntegra nesta página.

Lunar Landing Research Vehicle

O sangue-frio de Armstrong

Neil Armstrong sempre foi sóbrio, equilibrado, discreto e avesso à fama, um homem capaz de manter a cabeça fria em momentos complicados – esta última característica foi determinante para ser escolhido como o primeiro homem na Lua.

Os seus nervos de aço haviam-se revelado um ano antes da chegada à Lua, durante os testes com o Lunar Landing Research Vehicle (LLRV), uma aeronave modificada que operava com impulso de retro-foguetes e se destinava a simular as condições que o piloto teria de enfrentar quando tentasse pousar na Lua.

Os testes pareciam estar a correr normalmente, mas durante o movimento de aproximação ao local designado para a aterragem algo falhou: o veículo não respondeu aos comandos e começou a perder altitude com demasiada rapidez.

Armstrong salta de para-quedas e escapa a uma morte certa

Armstrong não entrou em pânico, tentando até à ultima recuperar o controlo do aparelho. Ejetou-se quando estava a apenas a 60 metros do chão, descendo em segurança no para-quedas enquanto o LLRV se despenhava no solo com uma explosão que teria morto qualquer pessoa a bordo (a história completa no Daily Mail). Ainda nessa manhã, Armstrong já testava outro protótipo como se nada de especial tivesse acontecido.

Armstrong fotografado depois dos primeiros «pequenos passos»

A vogal também foi à Lua

Não era homem de grandes exaltações. Só reconheceu a importância de dizer algo de memorável para uma ocasião memorável quando foi tornado público que seria ele o primeiro a descer e passou a receber milhares de cartas com sugestões sobre o que devia afirmar, desde citações da Bíblia a frases de Shakespeare.

Toda a gente – imprensa, colegas astronautas, instrutores, chefes de missão – insistiu no assunto nas semanas que antecederam a partida para a Lua, querendo saber o que iria dizer aquele homem sereno e de poucas falas.

Na altura nem ele sabia, como contou no livro biográfico First Man: The Life of Neil A. Armstrong, publicado em 2005, pois só começou a pensar numa frase durante o período de seis horas e 40 minutos entre a aterragem e o momento em que ele e Buzz Aldrin puderam finalmente abandonar o véiculo e pisar a Lua.

A frase de Armstrong mais citada – One small step for man, one giant leap for Mankind – está errada e não faz qualquer sentido. O que ele realmente disse foi «One small step for a man, one giant leap for Mankind».

A vogal faz a diferença, neste caso – e em português percebe-se bem –, entre «Um pequeno passo para o Homem, um salto gigante para a Humanidade», uma redundância pouco heróica; e «Um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a Humanidade», como de facto aconteceu.

Como pronunciou a vogal demasiado depressa e a qualidade da transmissão não era a melhor, o «a» em falta fez com que durante muitos anos se dissesse que um dos momentos mais importantes da nossa História fora definido com uma frase disparatada. Mas análises recentes ao som das transmissões mostraram que o «a» fora dito.

Ao contrário do que defendem os conspiracionistas da balhelhalogia cósmica, tanto Armstrong como a sua vogal estiveram mesmo na Lua.

Neil Armstrong citado pelo The Atlantic: «Levantei o polegar e fechei um olho, e o meu polegar tapou o planeta Terra. Não me senti um gigante, senti-me muito, muito pequeno»

Para o Infinito e mais além

A memória dos feitos de Armstrong e dos astronautas das missões Apollo poderá vir a sobrepor-se aos cortes orçamentais e levar-nos, um dia, a Marte – é pena que já cá não esteja para testemunhar o feito, pois merecia ter vivido uma nova aventura.

Quer sejamos pessimistas ou otimistas em relação ao futuro da Humanidade e ao papel que a Ciência terá nas nossas vidas, existem desde 1969 duas luas no nosso imaginário coletivo:

a lua dos poetas, músicos, amantes e místicos;

a lua dos astronautas, uma paisagem desolada mas veladamente bela, um caminho de aventura e exploração iniciado em pequenos passos de bebé saltitante.

6 comentários

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  1. Obrigado a todos.

    Espero que o artigo tenha merecido a satisfação dos admiradores de um dos grandes pioneiros da astronáutica…

    … e aborrecido de morte a confraria dos chapéus de alumínio.

  2. Excelente, Marco! 🙂

  3. Sim, Excelente artigo Marco
    Abracos

    • Luís Correia on 27/08/2012 at 10:18
    • Responder

    Vejo aqui tanta crítica destrutiva sobre falta de empenho dos EUA na conquista da lua, mas que se saiba a conquista do espaço continua. A prova é o Curiusity acabado de aterrar em Marte entre dezenas e dezenas de feitos, conquistas, sondas eniviadas, etc. etc.
    Mas será que estes críticos só vêem a lua, só querem a lua …?

    1. Caro Luís Correia ou Manel Jorge ou qualquer outro nome que se decida apresentar para fazer de troll,

      Apaguei o seu outro comentário com insultos a partir de fait-divers.

      Aprovei este comentário para lhe dizer que deveria ler os textos e tentar compreendê-los ANTES de fazer comentários disparatados.
      Eu sei que pode ser difícil para alguns, mas é uma sugestão minha.

      abraços

  4. Excelente artigo, Marco. 🙂

    E, como bem diz o André, dono do Ceticismo.net, o Universo ficou menor com a morte do Armstrong.

    Abraços.

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