Vida emergiu do controlo dos processos bioenergéticos da membrana celular

O uso de gradientes electroquímicos membranares para a conservação de energia é tão universal à vida na Terra quanto o próprio código genético. No entanto, apesar de ser um traço comum a todos os ramos da árvore filogenética, a sua origem permanece ainda um mistério. Um novo artigo publicado no mês passado na revista Cell vem agora analisar alguns aspectos recentemente descobertos do metabolismo anaeróbio das bactérias metanogénicas e acetogénicas, para fundamentar a hipótese de que o aparecimento dos mecanismos bioenergéticos das membranas celulares foram cruciais na transição da geoquímica para a vida em ambientes semelhantes às actuais fontes hidrotermais alcalinas.

Muitas arqueobactérias metanogénicas produzem energia a partir de uma simples reacção entre o hidrogénio e o dióxido de carbono (4 H2 + CO2 → CH4 + 2H2O). Para suportar as suas normais funções biológicas, cada célula produz em média, através deste processo, 40 vezes mais produtos de excreção que biomassa. Valores semelhantes são observados em organismos com maquinarias enzimáticas mais refinadas, como por exemplo as células humanas.

Antes do advento das enzimas, grande parte do fluxo de energia dissipava-se antes de ser usado no metabolismo celular, pelo que o excesso dos produtos de excreção versus biomassa deverá ter atingido valores superiores a 40 mil vezes! A inexistência de uma verdadeira especificidade nos processos de catálise fazia com que as primeiras células precisassem de muito mais matéria-prima e energia que as células modernas. Assim sendo, como obtinham os primeiros organismos vivos a energia que necessitavam para manterem o seu metabolismo, e como se desenvolveram os processos de conservação de energia actualmente observados em todos os organismos vivos?

De acordo com os autores do artigo, a resposta poderá estar na química de fontes hidrotermais alcalinas como as fontes submarinas de Lost City. Provavelmente abundantes nos primeiros oceanos terrestres, estes locais teriam as condições ideais para o aparecimento dos primeiros organismos vivos, porque a sua geoquímica mimetiza os aspectos mais fundamentais do metabolismo energético e de síntese de compostos de carbono das células autotróficas modernas (ler mais sobre este assunto aqui).

Hercules_Lost_CitySubmarino Hercules investigando a base de uma chaminé de carbonato nas fontes hidrotermais de Lost City, no Atlântico.
Crédito: University of Washington/the Lost City Science team/IFE/URI-IAO/NOAA.

As fontes hidrotermais alcalinas poderiam ter providenciado um fluxo contínuo de energia e de fontes de carbono a sistemas confinados por paredes minerais semipermeáveis ricas em sulfuretos de ferro (FeS) e de níquel (NiS). Estes microcompartimentos não só teriam criado por si gradientes naturais de protões (H+), como também teriam suportado superfícies catalíticas com propriedades semelhantes às ferredoxinas, enzimas com grupos FeS na sua estrutura, observadas nas espécies mais simples de procariotas metanogénicos e acetogénicos. Estas protocélulas teriam, assim, capacidade para assimilar carbono orgânico, implementar sistemas rudimentares auto-replicativos e, eventualmente, produzir as primeiras membranas orgânicas semipermeáveis. No entanto, sem sistemas membranares impermeáveis aos H+, estes primeiros organismos vivos estariam inteiramente dependentes do fluxo energético providenciado pelas fontes hidrotermais, pelo que ficariam para sempre agrilhoados ao destino das fontes hidrotermais.

Para abandonarem os microcompartimentos e ascenderem a uma vida livre nos oceanos, as protocélulas teriam primeiro de selar as suas membranas. Apesar de decisivo, este passo criaria necessariamente uma crise energética prematura, uma vez que estes primeiros organismos deixariam de beneficiar dos gradientes naturais de H+ existentes nas fontes hidrotermais. Mesmo na presença de proteínas membranares como a ATP sintase, a inexistência de mecanismos eficazes de remoção de H+ dissiparia o gradiente electroquímico, o que ameaçaria a sobrevivência destas primeiras células. Assim sendo, como escaparam estes primeiros sistemas biológicos à crise energética provocada pela selagem das suas membranas?

Martin_et_al_Dez2012_Cell_esq_membranaPossíveis etapas da evolução bioenergética no ambiente das fontes hidrotermais alcalinas. A – redução do CO2 pelo H2 dependente do Fe2+ e síntese orgânica nos microcompartimentos. B – Implementação de sistemas auto-replicativos, primeiras protomembranas orgânicas e surgimento de proteínas membranares como a ATP sintase. C – Aparecimento dos antitransportadores de Na+/ H+, proteínas-chave para a emancipação energética das primeiras células dos gradientes naturais de H+.
Crédito: Nick Lane e William Martin, Cell 151, Dezembro de 2012/adaptado por Sérgio Paulino.

Inspirados na bioquímica das bactérias metanogénicas e acetogénicas, Nick Lane e William Martin sugerem que as protocélulas deverão ter ultrapassado este dilema através da criação de antitransportadores de Na+/ H+, proteínas simples que usam o fluxo de H+ para o interior da célula para bombearem iões de sódio (Na+) para o exterior. De acordo com os dois autores, a impermeabilização membranar aos iões Na+ teria precedido a selagem da membrana aos iões H+, o que, por sua vez, geraria uma pressão evolutiva para o aparecimento de proteínas transportadoras de Na+ antes da instalação da crise energética. Com a criação de antitransportadores de Na+/ H+, a protocélula passaria a beneficiar dos gradientes naturais de H+ das fontes hidrotermais e de um gradiente bioquímico de Na+ a custo zero do ponto de vista energético, o que traria melhorias significativas em termos de conservação de energia. Após completarem a selagem das membranas ao fluxo de H+, estes organismos poderiam sobreviver apenas com o gradiente bioquímico de Na+, libertando-se, assim, da dependência energética das fontes hidrotermais.

A hipótese delineada por Lane e Martin cria, com elegância, paralelos entre a geoquímica das fontes hidrotermais e a bioquímica das proteínas com papel central na conservação de energia em organismos simples como as bactérias metanogénicas e acetogénicas, e explica, não só o aparecimento dos canais de iões como uma solução para uma crise energética prematura, como também a promiscuidade destas proteínas membranares a diferentes iões.

Podem consultar o artigo original dos dois autores aqui.

4 comentários

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  1. vou ser sincero, nao entendi muitas das palavras que aí estão o que me dificultou bastante o entendimento do texto, está muito elaborado e trabalhado, demasiado até para mim, bom texto sérgio.

  2. Uma questão semântica..

    Já que está no nível de uma hipótese plausível (o estudo não concluiu para uma teoria científica), não é mais adequado usar “A vida pode ter emergido… “?

    1. Olá Jonas,

      O controlo dos processos bioenergéticos membranares foi certamente um passo decisivo na emancipação dos primeiros organismos vivos de sistemas com gradientes naturais de iões. A hipótese dos autores está em como essa transição ocorreu. 😉

        • Jonas on 12/01/2013 at 21:46

        Ok!!

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