Um segundo planeta azul no Universo, a sério?

Bem sei que posso ser muito pi­cui­nhas com no­tí­cias na área de Ciência, mas há cer­tas es­co­lhas que se fa­zem no foco de uma no­tí­cia que me dei­xam intrigado.

Por exem­plo, o jor­nal The Independent no­ti­cia que «já não es­ta­mos sós». Porquê? Porque «os ci­en­tis­tas des­co­bri­ram um se­gundo pla­neta azul no Universo» além da Terra. Trata-se do pla­neta HD 189733b, na cons­te­la­ção da Raposinha (ou Vulpecula), um gi­gante ina­bi­tá­vel. «A al­cu­nha da Terra, pla­neta azul, pode ter per­dido al­gum sen­tido», es­creve o Diário Digital.

E es­tas sen­sa­ci­o­nais abor­da­gens deixam-me a co­çar a ca­beça por­que, se bem me lem­bro, Úrano e Neptuno não são ver­me­lhos, ama­re­los ou ro­sas. A não ser que me te­nha tor­nado dal­tó­nico de um dia para o ou­tro, são am­bos azuis.

Se no nosso pró­prio Sistema Solar já te­mos dois tão azu­li­nhos como a Terra, por que raio o The Independent de­sen­can­tou esta his­tó­ria de um se­gundo pla­neta azul no Universo? É quase tão ab­surdo como di­zer que o HD 189733b é o pri­meiro pla­neta em alta-definição do Universo.

Representação ar­tís­tica do pla­neta HD 189733b

Representação ar­tís­tica do pla­neta HD 189733b

O The Guardian, por seu turno, per­ce­beu qual era a ver­da­deira no­tí­cia: pela pri­meira vez, fo­mos ca­pa­zes de de­ter­mi­nar a cor de um exo­pla­neta, um azul-cobalto se­me­lhante à Terra. Como con­se­gui­ram os as­tró­no­mos de­ter­mi­nar a cor real de um ob­jeto a 63 anos-luz de dis­tân­cia e ofus­cado pela luz da sua estrela?

Felizmente é mais sim­ples de ex­pli­car do que fa­zer – e vai de­mo­rar me­nos tempo, se tudo cor­rer bem. Considerem os pa­rá­gra­fos que se se­guem como um tri­buto à ca­pa­ci­dade que o Facebook me dá de mel­gar ci­en­tis­tas a longa distância.

Começa-se por ob­ser­var a luz da es­trela. Mede-se a to­ta­li­dade da luz re­fle­tida e a sua dis­tri­bui­ção es­pec­tral. Isto é feito quando o pla­neta passa por de­trás da es­trela – o eclipse se­cun­dá­rio. Esta é a fase a que eu chamo – in­cor­re­ta­mente, bem sei – a conta de somar.

Antes e de­pois desse eclipse se­cun­dá­rio, o pla­neta mostra-nos a sua fase diurna quase vol­tada para a Terra – isto per­mite me­dir a quan­ti­dade de luz re­fle­tida, ou seja, o seu al­bedo. Acontece que a luz é uma mis­tura da que é re­fle­tida pelo pla­neta e da luz da pró­pria es­trela, esta em muito maior quan­ti­dade. Ora, isto é um gra­nel de luz que nin­guém se entende.

Como con­se­guem eles en­tão iso­lar a luz mais té­nue do pla­neta? Resposta sim­ples: ob­ser­vando e fa­zendo umas con­ti­nhas. E é aqui que en­tra­mos na fase a que eu chamo – de forma in­cor­reta, eu sei – a conta de sub­trair.

A pri­meira coisa a fa­zer é ob­ser­var de novo o eclipse se­cun­dá­rio para che­gar às di­fe­ren­ças. Depois a conta faz-se assim:

a – b = c, ou seja,

a (es­pec­tro de luz do pla­neta e da es­trela) me­nos b (es­pec­tro de luz ape­nas da es­trela) é igual a c (es­pec­tro de luz do pla­neta). Canja! Determinando as di­fe­ren­ças no es­pec­tro, determina-se o es­pec­tro do pla­neta. (Devia ter sido as­tró­nomo. Ou co­ruja. Passo as noi­tes acor­dado, já pre­en­cho pelo me­nos um terço das qua­li­fi­ca­ções ne­ces­sá­rias). Fora de brin­ca­dei­ras: ga­mei um bo­ca­di­nho da ex­pli­ca­ção do Professor Luís Lopes no seu ar­tigo no AstroPT.

Rui Costa, «as­tró­nomo ama­dor desde sem­pre», ad­mi­nis­tra­dor do fó­rum da Associação Portuguesa de Astrónomos Amadores e um dos que pa­ci­en­te­mente me aju­dou a per­ce­ber me­lhor a no­tí­cia, acres­centa o seguinte:

“Nesse pla­neta há um de­ta­lhe que fa­ci­lita as coi­sas: por um fe­liz acaso, o plano da ór­bita está ali­nhado com a nossa li­nha de vi­são e, por isso, o pla­neta passa mesmo em frente da es­trela, quando está “deste lado”, para de­pois pas­sar por trás da es­trela, quando está do ou­tro lado.

Este por­me­nor fa­ci­lita a sub­tra­ção da luz/espectro da es­trela pois po­de­mos ob­ter esse es­pec­tro na al­tura em que o pla­neta está eclip­sado, em que a única luz que nos chega é a da estrela.

Isto tam­bém per­mite que, na al­tura em que o pla­neta passa mesmo em frente à es­trela, se ob­te­nha um ou­tro tipo de es­pec­tro. Nessa al­tura a luz que nos chega não é ape­nas a da es­trela; tam­bém chega até nós a luz da es­trela que atra­vessa a at­mos­fera do planeta.

Se se ob­ti­ver um es­pec­tro da luz da es­trela nessa al­tura (du­rante o trân­sito), e se com­pa­rar com o es­pec­tro da es­trela du­rante um eclipse do pla­neta (em que ele passa por trás dela e não há ab­so­lu­ta­mente ne­nhum con­tri­buto da sua luz), qual­quer di­fe­rença do es­pec­tro só pode ser atri­buída à luz re­fra­tada (não con­fun­dir com luz re­fle­tida) pela at­mos­fera do pla­neta.”

NASA/ESA/G. Bacon

NASA/ESA/G. Bacon

Um mundo com te­lha­dos de pedra

O facto de ser azul como a Terra é mesmo a única ca­rac­te­rís­tica que une este nosso mundo e o gi­gante a 63 anos-luz. Este está muito pró­ximo da sua es­trela –  HD189733, uma anã de tipo K – e dá uma volta com­pleta a cada dois dias.

Notem bem: no topo da at­mos­fera atingem-se tem­pe­ra­tu­ras su­pe­ri­o­res a 1000 graus Celsius. As nu­vens são for­ma­das por si­li­ca­tos – ou seja, ca­lhaus. É ver­dade: as fa­mo­sas e ab­so­lu­ta­mente ali­e­ní­ge­nas nu­vens de pe­dra dos Hot Jupiters ou Júpiteres Quentes – gi­gan­tes ga­so­sos como este, or­bi­tando muito perto da sua es­trela. Vejam este ví­deo no AstroPT.

Não chove água, como na Terra, ou ácido sul­fú­rico, como em Vénus, mas par­tí­cu­las de vi­dro. As va­ri­a­ções na tem­pe­ra­tura en­tre o lado diurno e o no­turno pro­du­zem ven­tos que po­dem che­gar aos 7 mil qui­ló­me­tros por hora. É um mundo im­pró­prio para es­ti­lis­tas de moda e ina­bi­tá­vel para qual­quer ou­tro ser vivo que conheçamos.

Este mundo é tudo isto e mais al­guma coisa que ainda não des­co­bri­mos –  mas não é «o se­gundo pla­neta azul do Universo», como afirma o The Independent e to­dos os que pi­ca­ram o texto do The Independent. A in­for­ma­ção está dis­po­ní­vel para quem a qui­ser en­con­trar e cos­tuma ser igual­mente ape­la­tiva, não é pre­ciso sacrificá-la no al­tar das abor­da­gens populistas.

2 comentários

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  1. amei eu amo essas coisas de universo mas nao posso entrar muito nisso pois tenho 12 anos #pena

  2. Olá Marco,

    Preferia que me tratasses apenas por Luís 😉

    Ab.

  1. […] habitabilidade, conversa, 3 planetas), Gliese 163c, GJ 1214b (atmosfera de água), Kepler-186f, HD 189733b, KOI-500, KOI-961, KOI-172.02. KOI 463.01, KOI 812.03 e KOI 854.01. Alfa do Centauro A, Alfa […]

  2. […] artística da estrela HD189733A, o júpiter quente HD189733Ab de cor azulada, rodeado de uma atmosfera extensa e ténue, e a anã vermelha HD189733B. A imagem no canto superior […]

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