Iliteracia, Carl Sagan e a inspiradora Ann Druyan

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Partilho das preocupações do meu amigo Rui Eduardo Paes em relação à iliteracia, mas sou mais optimista.

O optimismo deriva, em parte, do facto de blogzines como o Obvious ou espaços de divulgação científica como o AstroPT terem um número significativo de visitantes regulares, provando que ainda há espaço para a primazia da palavra escrita e da análise num meio tão vincadamente multimédia e imediatista como o da Internet.

Mas não é a única razão, nem a mais importante. Carl Sagan provou há muito tempo como é gratificante apostar quase cegamente na inteligência das pessoas – e basta ver o grande número que ele inspirou ou influenciou para ficar convencido de que apostar na inteligência costuma ser o melhor caminho, mesmo quando é necessário esperar muitos anos até se ver resultados.

Uma intervenção de Ann Druyan, viúva de Carl Sagan, durante uma sessão comemorativa da vida e obra do marido, na Universidade de Cornell, fez-me acreditar que na verdade não há outro caminho.

Ann Druyan e Carl Sagan

Ann Druyan e Carl Sagan

Feliz aniversário

O discurso de Druyan – uma mulher bonita, inteligente e inspiradora – foi feito em momentos mais felizes. Sagan comemorava 60 anos de vida, os sinais da doença que haveria de o matar dois anos depois ainda não se tinham manifestado, e muitos amigos e colegas decidiram homenageá-lo publicamente.

James Randi, ilustre caçador de tretas da pseudo-ciência e da ciência maluca; Frank Drake, astrónomo muito ligado ao projeto SETI e criador da famosa equação de Drake; Kip Thorne, professor de Física Teórica no Instituto de Tecnologia da California – estes são alguns dos nomes que aceitaram dar uma palestra em honra dos 60 anos de Sagan.

Todas as intervenções – incluindo a do próprio Carl Sagan (o discurso na Universidade de Cornell veio a dar origem a um dos seus mais famosos escritos) – foram reunidas num livro editado pela Gradiva chamado O Universo de Carl Sagan – Volume de Homenagem. 370 páginas de puro deleite e ainda absolutamente atuais, não obstante terem passado quase vinte anos desde que as palestras foram proferidas.

A magnífica intervenção de Ann Druyan focou-se no esforço de popularização da Ciência. Vale a pena tal esforço? As pessoas valem esse esforço?

Como haveria de questionar o físico e excelente comunicador Brian Cox, mais de vinte anos depois, devemos lutar pela noção democrática de que a Ciência não é domínio exclusivo de um grupo de sábios, mas que nos pertence a todos por se tratar de uma resposta humana normal à realidade?

E também contou algumas histórias.

Tive o privilégio de acompanhar Carl Sagan em quase vinte das suas sessenta viagens à volta do Sol. Inúmeras vezes vi pessoas aproximarem-se dele na rua, desde que a série Cosmos foi transmitida pela primeira vez, dizendo «Dr. Sagan, sou cientista graças a si», «Dr. Sagan, interessava-me pela Ciência, mas nunca pensei que fosse capaz de compreendê-la antes de ler o artigo da Parade», ou «vi aquele episódio da série Cosmos», ou «li um dos seus livros».

Agradeciam ao Carl pelas suas vocações e interesses. Recordo um testemunho particularmente comovente. «O senhor fez-me compreender que faço parte do tecido da Natureza, parte do Universo, um sentimento que procurei em vão na Igreja».

Penso muitas vezes no porteiro da Union Station em Washington, que recusou uma gorjeta do Carl dizendo-lhe: «Guarde o seu dinheiro, Dr. Sagan. O senhor deu-me o Universo. Deixe-me ser eu agora a fazer alguma coisa por si». (…)

Gostaria de concluir com um incidente que ocorreu logo após a primeira emissão da série Cosmos. O Carl e eu estávamos a passar pela alfândega no aeroporto Kennedy, e todos sabem como nos sentimos nestas circunstâncias; mesmo que sejamos inocentes, temos sempre uma sensação de desconforto, sabem, será que pareço nervosa? Estarei a morder os lábios? Será que estou a sorrir de mais?

Estávamos à espera na fila e de repente um agente olhou para o Carl. «Posso ver o seu passaporte»? Pegou no passaporte. «Muito bem, Dr. Sagan, por favor, queira acompanhar-me». O Carl e eu demos por nós a pensar: o que será que fizemos? Teremos declarado o perfume? O que se passará?

O agente alfandegário chamou outra pessoa, um supervisor, e nós a pensar, bem, vai ser uma tarde longa e feia. Conferenciaram em segredo durante um momento e depois avançaram e disseram: «Dr. Sagan, o meu colega e eu achamos que não jogou limpo com Platão. Parece-nos bem que goste dos pré-socráticos, nós também gostamos. Mas vamos conversar acerca de algumas das grandes coisas que Platão fez e vamos pensar nele no contexto de Aristóteles.

É apenas mais um sinal do que pode acontecer quando não se menosprezam as pessoas, quando as respeitamos e à sua inteligência e quando queremos partilhar as coisas que mais significado têm para nós, as ideias que achamos mais elevadas, mais excitantes, mais estimulantes.

Bem sei que Ann Druyan se referia exclusivamente à necessidade de popularizar a Ciência e às recompensas que se podem obter da missão, mas estas palavras servem também às mil maravilhas para definir o que é um blogue, o prazer de o escrever e a motivação para o manter vivo.

Muitos de nós atribuem a Sagan uma grande importância para a sua formação – alguns textos dele deveriam fazer parte do currículo escolar de qualquer escola. Mas até que ponto o grande comunicador da Ciência não terá sido influenciado e encorajado por Ann Druyan, uma excelente escritora e comunicadora por mérito próprio?

As palavras desta fantástica senhora inspiram e dão força a qualquer profissão – de jornalista a professor – cuja atividade implique um esforço de comunicação e partilha de conhecimento. E mesmo que esse conhecimento seja muitas vezes insuficiente ou imperfeito ou esporádico, como é o meu caso, basta inspirar a busca por conhecimentos mais profundos e consistentes para que toda esta loucura de manter um blogue valha sempre a pena.

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  1. […] científica. Contudo, no Astropt já há diversas publicações sobre Carl Sagan, aqui, aqui, e aqui, e também aqui, e mais aqui. . De qualquer modo, nesta altura em que passam 20 anos sobre o seu […]

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