Efeito de Maré

Qualquer pessoa que tenha estado mais de seis horas numa praia, se esteve atento ao movimentar do mar, deverá ter presenciado o efeito de maré. O fenómeno é caracterizado por um “avançar” e “recuar” do mar pela praia, sendo denominada por “maré baixa” a fase em que o mar está mais recuado (a praia tem um maior areal) e por “maré alta” quando o mar cobre uma maior área da praia. Neste artigo vou explicar este efeito,  bem como conotá-lo com um facto bem conhecido de todos, mas que poucos sabem estar relacionado com o efeito de maré: o facto de a Lua nos apresentar sempre a mesma face.

É possível que o leitor saiba que o responsável pelo efeito de maré é o satélite natural da Terra, a Lua. Creio que este conhecimento é do senso comum, porém, se questionarmos o senso comum, por vezes, como é o caso, deparamo-nos com questões que o senso comum não sabe responder. Neste caso, o senso comum afirma: “ora, a Lua tem uma massa considerável, logo a sua força gravítica que ela aplica nos oceanos da Terra deverá ser capaz de os fazer deslocar”. Além disso, o deslocamento deverá ser no sentido da Lua. Como a Terra dá uma volta sobre si própria num dia, os oceanos vão-se “deslocando”, de modo a ficarem sempre mais próximos da Lua, devido à sua atração (ver Figura 1). Há um problema grave com esta explicação: se a Terra só dá uma volta sobre si própria num dia, isto implica que só deveria haver uma maré por dia, no entanto, há duas marés por dia! Esta questão conseguiu colocar muitas mentes brilhantes a pensar (desde a antiguidade clássica), mas só a de Isaac Newton chegou à resposta.

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Figura 1: Na imagem de cima pode-se observar o efeito que a Lua (ou o Sol) deveria produzir nos oceanos da Terra, segundo a concepção “lógica” do nosso senso comum. Na imagem de baixo está representado o efeito que de facto acontece (em concordância com as duas marés por dia).

Antes de responder à questão, é importante expor (ou quiçá relembrar, para aqueles que aprenderam um pouco de Física) algumas noções sobre o conceito de força.

Em Física há dois tipos de grandezas: escalares e vectoriais. Uma grandeza escalar pode ser caracterizada simplesmente por um número. A temperatura é um exemplo de uma grandeza escalar: “a temperatura na sala é de 20ºC” – a informação, no que toca à temperatura, está completa. O mesmo não acontece, por exemplo, com a velocidade, que é uma grandeza vectorial. Se nos pedirem para andar a 5 km/h, é natural que questionemos: “para onde?”. Assim, a grandeza velocidade (ou qualquer outra grandeza vectorial) só fica inteiramente caracterizada se além da magnitude se definir a “direção” (vertical, por exemplo), o “sentido” (de cima para baixo, por exemplo) e o ponto em que é aplicada. Notar que os conceitos de “direção” e “sentido” têm significados específicos neste contexto (em Física têm sempre este significado) e não devem ser confundidos. Os vectores são normalmente representados por setas, em que o comprimento da seta representa a magnitude, o segmento de recta da seta indica a direção, a seta o sentido e o ponto onde começa o segmento, é o ponto de aplicação da força.

Aplicando esta conceptualização para o caso da força que a Lua (ou o Sol) aplica na Terra: tem uma dada magnitude, tem a direção da recta que une  a Lua com a Terra e o sentido, uma vez que a força gravítica é atrativa, é da Terra para a Lua (ou seja, pode-se representar por uma seta que está localizada na Terra e aponta para a Lua).

Outro conceito necessário à explicação sobre o efeito de maré é o de centro de massa. O centro de massa é um ponto imaginário de um corpo que é definido como o ponto onde a massa se “equilibra” em todas as direções. Por exemplo, o centro de massa de um lápis é mais ou menos no seu centro (podem equilibrá-lo por esse ponto – ver Figura 2), no entanto, se a massa do corpo não estiver toda igualmente distribuída, o centro de massa será desviado: numa caneta, por exemplo, o centro de massa já não será ao centro, mas um pouco deslocado para o lado da tampa… O centro de massa é um conceito importante no estudo do movimento de um corpo maciço, pois, como é o ponto de “equilíbrio de forças”, a trajetória do centro de massa é coincidente com a trajetória do corpo.

Figura 2: O centro de massa localiza-se no centro do lápis, um pouco acima do ponto de apoio.

Por fim, o último conceito necessário para compreender o efeito de maré provém da Lei da Gravitação Universal de Newton: a força gravítica varia com o inverso do quadrado da distância, o que simplesmente quer dizer que um corpo mais próximo da Terra (por exemplo) é atraído com maior força, do que outro mais distante.

Passo então a descrever o efeito de maré e fá-lo-ei para o caso do efeito que o Sol produz sobre a Terra, pois é intuitivamente mais fácil de compreender, ainda que o efeito seja exatamente o mesmo no caso da Lua sobre a Terra (ou da Terra sobre a Lua; não digo da Terra sobre o Sol, pois esse é negligenciável, devido ao facto de a Terra ter uma massa muito menor que a do Sol, o que faz com o que o efeito de maré seja muito fraco).

A Terra orbita o Sol devido à força gravítica que atrai a Terra para o Sol (ver o artigo Porque é que a Lua não cai na Terra? para mais pormenores sobre orbitação), e como é evidente, orbita-a como um “todo”, visto que a Terra é um corpo maciço, seguindo a trajetória do seu centro de massa (aproximadamente no centro da Terra). Mas, como disse, a força gravítica depende da distância. Como a Terra não está concentrada num só ponto, só o centro de massa da Terra é que “sente” a força gravítica responsável pela trajetória, todos os outros pontos da Terra sentem forças ligeiramente diferentes, por estarem a distâncias diferentes do Sol – pontos mais próximos sentem maior força, pontos mais distantes menor força. Contudo, como a Terra se movimenta como um todo, a força responsável pelo movimento tem que ser igual para todos os pontos do planeta. Isto implica que em pontos mais próximos do Sol “sobra” alguma força gravítica, enquanto que em pontos mais distantes (em relação ao centro de massa) “falta” alguma força. Nos pontos que “sobra” força é fácil de compreender que haja uma atração no sentido do Sol, naqueles que “falta” força é que é necessário ter em consideração que a força é uma grandeza vectorial, pelo que o “faltar” num dado sentido, significa apenas que a força aponta no sentido contrário. É efetivamente isso que acontece no efeito de maré, como se pode visualizar na Figura 3 (nesta Figura tem a Lua – “Moon”, em vez de Sol, mas, como disse, o efeito é igual).

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Figura 3: Efeito de maré produzido sobre a Terra pela Lua. As setas indicam o sentido da força de maré.

Como disse, o efeito de maré é mútuo, ou seja, a Terra induz o efeito na Lua e a Lua na Terra, pelo que, como está claro, o efeito não existe apenas se um corpo orbitar o outro, apenas é mais compreensível o fenómeno nessa situação*. As chamadas marés vivas ocorrem quando o efeito de maré que o Sol produz sobre a Terra está “alinhado” com o efeito da Lua, havendo como que uma “soma” de ambos os efeitos. Em termos quantitativos, a altitude da maré criada pela Lua é de cerca de 50 cm, enquanto que a criada pelo Sol é de cerca de 25 cm (o facto de ser aproximadamente metade é apenas uma coincidência). Acrescento ainda que a Figura 3 (bem como a maior parte das Figuras que podem encontrar na internet e até em livros científicos) não se referem à maré do mar! Sem querer confundir o leitor: a maré alta situa-se nos “locais” que na figura identificaria como maré baixa! O efeito de maré na verdade deforma (ainda que de forma muito reduzida) todo o planeta, logo o mar, que está apenas na sua superfície, acaba por “deslizar” para as partes mais baixas, devido à atração da gravidade terrestre. Por outras palavras, a Figura 3 é verdadeira para a terra em si, não para os oceanos, ou seja, a mesma figura pode ser usada para explicar o efeito de maré em qualquer planeta, mas se o planeta tiver uma superfície líquida, então as marés produzidas nesse fluído serão consequência do efeito de maré produzido na parte “sólida” do planeta.

*Na verdade, quando se considera um sistema de dois corpos (para simplificar), se A tem uma massa muito maior que B, então B orbita A. Mas será que B fica efectivamente “parado”? Não. Ambos os corpos orbitam em torno do centro de massa do sistema dos dois corpos. Porém, como a massa de A é muito maior que a de B, isso implica que o centro de massa do sistema A+B seja praticamente coincidente com o centro de massa de A, daí parecer que apenas B orbita, ainda que tal não seja estritamente verdade.

O leitor arguto terá certamente pensado: “se a Terra está sempre a girar isso implica que o efeito de maré esteja sempre a alterar o seu alinhamento, logo a Terra está em constante deformação!”. De facto, assim é, e como os materiais que constituem a Terra “tentam” resistir à deformação (como que um efeito de viscosidade), isso leva a que a deformação não esteja efetivamente alinhada com a Lua, ou seja, há um desfasamento entre a causa e o efeito. Esta constante deformação de materiais tem um custo energético – há uma dissipação energética na interação entre a Terra e a Lua, a qual se observa numa diminuição da velocidade de rotação da Terra e um aumento da distância da Lua em relação à Terra (3 cm ao ano). A dissipação energética só deixará de acontecer quando deixar de haver deformação, ou seja, quando a causa e o efeito estiverem alinhados, o que significa: quando a Terra completar uma volta sobre si própria no mesmo tempo que a Lua dá uma volta em torno da Terra (tal só acontecerá para lá do tempo de vida do Sol).

O contrário já acontece: a Lua já dá uma volta sobre si própria no mesmo tempo que leva a dar uma volta sobre a Terra (daí que apresente sempre a mesma face), isto porque a Terra produz um efeito de maré sobre a Lua muito mais poderoso do que aquele que a Lua produz sobre a Terra (o efeito depende da massa de ambos os corpos, bem como das suas distâncias).

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Se ficaram com alguma dúvida não hesitem em comentar, que eu depois respondo.

2 comentários

3 pings

    • Graciete Virgínia Rietsch Monteiro Fernandes on 17/04/2014 at 18:57
    • Responder

    Finalmente fiquei a compreender bem o efeito maré. Mas de repente surgiu-me uma dúvida. Haverá alguma relação entre a dimensão da maré, no Oceano, e as fases da Lua?
    Os meus cumprimentos.

    1. Tem relação na medida que as fases da Lua “denunciam” o alinhamento com o Sol, o que, como refiro no artigo, dá origem a marés vivas (no entanto, não podemos esquecer que existe um desfasamento entre a causa e o efeito, pelo que a maré viva não corresponde exactamente à Lua Cheia e Lua Nova).

      Cumprimentos,
      Marinho

  1. […] O movimento circular uniforme é um movimento que descreve um círculo de raio ‘r’ a velocidade ‘v’ constante, isto é, a magnitude da velocidade permanece constante. A velocidade como vector varia, porque a direcção da velocidade varia a cada momento, como se pode depreender da imagem acima. Note-se também que a força ‘F’ é sempre perpendicular à velocidade. Recordo que a força é dada pelo produto da massa com a aceleração ‘a’. Como a massa é um escalar, a aceleração tem necessariamente a mesma direcção que a força, e como tal é perpendicular à velocidade. (O conceito de força já foi discutido no artigo sobre as Forças da Natureza, e a noção de vector no artigo sobre o Efeito de Maré.) […]

  2. […] nos mostra diferentes fases (ainda que a face seja sempre a mesma, como discuti no artigo sobre o efeito de maré). A Lua demora pouco menos de um mês a dar uma volta em torno da Terra, e enquanto dá essa volta, […]

  3. […] 48 – Causas das Marés. Mistério. Explicação. Efeito de Maré. […]

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