A Origem do Flúor

Elementos mais pesados do que o hidrogénio e o hélio são sintetizados no interior das estrelas através de reacções de fusão nuclear. Enquanto a pressão da radiação produzida nestas reacções tenta expandir a estrela, o peso do material que a constitui tenta comprimi-la. Uma estrela vive sempre no gume da navalha, tentando equilibrar estas duas forças, num estado que se designa de equilíbrio hidrostático.

O tipo de elementos que as estrelas conseguem produzir depende essencialmente da sua massa inicial. Quanto maior a massa de uma estrela, mais elevada é a sua temperatura nuclear e mais extensa será a variedade de reacções e combustíveis nucleares que ela pode experimentar para manter o seu equilíbrio. Os elementos mais simples da tabela periódica, como o carbono, o nitrogénio e o oxigénio, são produzidos por estrelas de massa modesta, como o nosso Sol, mas ainda mais eficientemente por estrelas mais maciças. São por isso extremamente vulgares no Universo. Em contrapartida, elementos como o magnésio e o silício exigem temperaturas mais elevadas para serem formados e portanto só são produzidos pelas estrelas mais maciças e mais raras.

No entanto, mesmo as estrelas mais maciças só conseguem sintetizar elementos até ao ferro. A criação de um núcleo de ferro no interior da estrela constitui um beco sem saída de consequências catastróficas. A fusão do ferro não liberta energia e, numa fracção de segundo, o núcleo da estrela perde o equilíbrio hidrostático e colapsa, provocando a explosão da estrela, num evento designado por supernova. Durante a explosão, uma onda de choque percorre a estrela do interior até à sua superfície, dando origem a temperaturas tão elevadas que permitem a formação de mais elementos, nomeadamente pequenas quantidades dos elementos mais pesados do que o ferro, como o iodo, o ouro ou o urânio.

Este cenário, originalmente proposto na década de 60 por William Fowler, Margaret e Geoffrey Burbidge e Fred Hoyle, parece implicar que os elementos mais simples são produzidos com mais facilidade que os mais complexos, e por isso devem ser sempre mais abundantes. Mas a realidade é mais subtil e existem excepções. Uma delas, a baixíssima abundância de flúor, é particularmente interessante. Na realidade, a fraca abundância do flúor não é problemática – esta era esperada, pois os cálculos demonstram claramente que, uma vez formado, o flúor é rapidamente destruído ou reciclado por outras reacções que produzem elementos mais abundantes. O que é intrigante é que, apesar desta fragilidade, seja observado flúor no gás e nas poeiras interestelares. Para explicar esta persistência inesperada do flúor, os astrónomos tentam encontrar cenários em que ele possa ser produzido e posto a salvo rapidamente.

1024px-SolarSystemAbundances_Graph showing the abundances of elements in the universe, normalized to the abundance of the common element silicon
(A abundância relativa dos elementos no Universo. Note-se que a escala vertical é logarítmica. A baixa abundância do flúor relativamente aos elementos vizinhos é bem notória. Crédito: Wikipedia)

Um dos cenários propostos para a produção de flúor envolve precisamente a explosão de uma estrela numa supernova. O colapso do núcleo de ferro da estrela dá origem a um fluxo inimaginável de pequenas partículas elementares chamadas neutrinos. Se toda a energia transportada por estes neutrinos fosse transformada em luz visível, no momento do colapso do núcleo a estrela seria mais brilhante do que todo o Universo observável! Os neutrinos têm a particularidade de interagirem muito raramente com outras partículas. De facto, em cada segundo, somos atravessados por um fluxo constante de milhões de milhões de neutrinos provenientes do Sol, que passam por nós como se não estivéssemos no caminho. Numa supernova, no entanto, a quantidade de neutrinos formada é tão elevada que muitos destes neutrinos colidem com núcleos de átomos nas camadas mais exteriores da estrela. Quando eles atravessam uma camada rica em átomos de néon, a colisão de um deles com um destes núcleos atómicos, pode criar um novo núcleo atómico de flúor estável. A expansão rápida da onda de choque e o consequente decréscimo da temperatura evitam mais reacções e preservam parte deste flúor. As camadas exteriores da estrela, com o flúor incluído, são atiradas para o espaço a grande velocidade (tipicamente na ordem dos 10 mil km/s) arrefecendo ao longo dos anos e permitindo aos núcleos de flúor a captura de electrões e a sua participação na química interestelar.

NASA's Chandra X-ray Observatory Celebrates 15th Anniversary
(O remanescente de supernova G292.0+1.8 visto em raios X pelo observatório Chandra. As diferentes cores correspondem a comprimentos de onda associados à emissão de raios X de diferentes elementos forjados no interior da estrela que explodiu: amarelo e laranja – oxigénio, verde – magnésio e silício e enxofre – azul. De acordo com o primeiro cenário, algum do gás do remanescente poderá ser flúor. Crédito: NASA/CXC/SAO)

Um outro cenário envolve a produção de flúor em estrelas maciças e luminosas de uma classe designada de Wolf-Rayet (em memória dos dois astrónomos franceses que as estudaram em detalhe pela primeira vez). Trata-se de estrelas muito maciças e ricas em “metais”, o termo utilizado pelos astrónomos para designar todos os elementos mais pesados do que o hidrogénio e o hélio. A radiação ultravioleta produzida por estas estrelas é tão intensa que arrasta consigo um vento de iões atómicos formado principalmente por nitrogénio, carbono e oxigénio. Os iões absorvem os fotões ultravioletas em comprimentos de onda característicos que dependem da sua estrutura electrónica. Da absorção resulta uma transferência de momento dos fotões para os iões. Estes iões com origem no interior da estrela são assim projectados para o espaço numa escala de tempo muito curta e com velocidades que atingem milhares de km/s. O flúor, um subproduto das reacções que envolvem os elementos acima referidos, faz também parte desse vento e consegue dessa forma atingir a segurança do meio interestelar.

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(O poderoso vento estelar da estrela de Wolf-Rayet HD 192163 criou, ao longo de milhares de anos este casulo de material rico em elementos como o oxigénio, nitrogénio, carbono, hélio e hidrogénio. O segundo cenário apresentado neste artigo propõe que este cocktail de material expulso da estrela inclui também flúor. A HD192163 é a estrela mais brilhante aproximadamente no centro da nebulosa. Crédito: Daniel López (IAC))

O terceiro cenário envolve estrelas de massa mais modesta, num estágio avançado da sua evolução, designadas genericamente por gigantes vermelhas. Todas as estrelas transformam hidrogénio em hélio nos seus núcleos durante milhares de milhões de anos – uma fase designada de sequência principal. Nas estrelas aqui em causa, com uma massa pouco superior à do Sol, a fusão do hidrogénio em hélio é realizada por um processo designado de “Ciclo CNO”, em que o carbono, o nitrogénio e o oxigénio que existem em quantidades vestigiais no material da estrela actuam como catalisadores. No final da sequência principal, a estrela é composta por um núcleo inerte de hélio, rodeado por uma camada de hidrogénio. Para manter o seu equilíbrio hidrostático, o núcleo da estrela contrai-se lentamente e a temperatura aumenta gradualmente. Em seu redor, numa parte da camada de hidrogénio inicia-se a fusão de hidrogénio em hélio. Consequência desta alteração estrutural, as camadas mais exteriores da estrela expandem-se, tornam-se mais frias e passam a emitir principalmente no infravermelho. A estrela transforma-se numa “gigante vermelha”. Após alguns milhões de anos, o núcleo atinge uma temperatura crítica que permite à estrela iniciar a fusão do hélio em carbono e oxigénio. Nesta altura, a fusão do hidrogénio em hélio na camada exterior ao núcleo é interrompida e a estrela altera de novo o seu aspecto tornando-se mais quente e mais pequena. Ao fim de alguns milhões de anos, forma-se um núcleo inerte de carbono e oxigénio (e outros elementos com abundância muito menor), rodeado de uma camada de hélio e uma camada mais exterior de hidrogénio. Mais uma vez o equilíbrio hidrostático obriga o núcleo a contrair-se mas desta vez não haverá ignição de mais reacções – a massa modesta destas estrelas não o permite. A estrela entra numa fase designada de AGB (de “Asymptotic Giant Branch”). A contração do núcleo inerte de carbono e oxigénio provoca um aumento gradual de temperatura até que, na camada de hélio adjacente, se dá a ignição do hélio. A fusão do hélio em carbono e oxigénio é instável e ocorre em episódios periódicos, alternando com a fusão do hidrogénio em hélio numa camada mais exterior. Durante esta fase desenvolvem-se correntes de convecção poderosas que transportam material das camadas mais interiores da estrela, incluindo do núcleo, até à sua superfície. A convecção permite a formação de flúor, através da reacção de nitrogénio proveniente da zona nuclear com o hélio das camadas mais exteriores. Esta instabilidade na estrela traduz-se também em pulsações durante as quais a estrela expulsa uma parte substancial das suas camadas exteriores, enriquecidas com elementos trazidos pelas correntes de convecção, para o espaço. O flúor que atinge a superfície é transportado neste vento estelar denso e de baixa velocidade. Este material arrefece rapidamente nas imediações da estrela e forma um casulo de poeiras e gases produzidos por combinação química dos elementos. Aqui, o flúor reage rapidamente com outros elementos incluindo-se em cristais microscópicos nos grãos de poeira ou formando compostos voláteis como o fluoreto de hidrogénio.

m57_hubble_ NASA, ESA, C.R. O'Dell (Vanderbilt University), and D. Thompson (Large Binocular Telescope Observatory)
(A nebulosa planetária Messier 57 mostra a fase pós-AGB de uma estrela de massa pouco superior ao Sol. As camadas exteriores da estrela atiradas para o espaço ao longo de milhares de anos devidos às pulsações violentas da fase AGB. O núcleo de carbono e oxigénio muito quente da estrela original é a pequena estrela no centro da nebulosa colorida. A luz ultravioleta intensa deste núcleo exposto provoca a florescência do gás mais próximo da estrela, com cores características de cada elemento. O gás é rico em oxigénio, nitrogénio, hélio. Nos últimos anos foi detectado flúor em várias nebulosas planetárias. Crédito: NASA, ESA, C.R. O’Dell (Vanderbilt University), e D. Thompson (Large Binocular Telescope Observatory))

Cada um destes cenários tem diferentes implicações em termos observacionais. Por exemplo, se o flúor tem origem em supernovas, então mesmo as estrelas mais velhas da nossa galáxia devem conter o elemento, uma vez que se formaram a partir do gás e das poeiras enriquecidos pela primeira geração de estrelas maciças que explodiram como supernovas. Por outro lado, a formação de flúor em estrelas de Wolf-Rayet ou em gigantes vermelhas, implica que este elemento só deve ocorrer em estrelas de gerações mais recentes da nossa galáxia. De facto, as estrelas de Wolf-Rayet só se formam em ambientes em que o gás está suficientemente enriquecido com “metais”, para o que são necessárias várias gerações de supernovas. Já as gigantes vermelhas só atingem a fase AGB ao fim de milhares de milhões de anos; tendo em conta que o Universo tem apenas 13.7 mil milhões de anos, a ocorrência de flúor só seria notória em estrelas de gerações relativamente recentes.

Ao longo dos anos, e à medida que a tecnologia dos espectrógrafos (os instrumentos utilizados para analisar a composição das estrelas) foi evoluindo, várias equipas de astrónomos foram atacando este problema, tentando determinar qual (ou quais) dos cenários propostos conseguiam explicar a abundância observada do flúor. Apesar dos vários artigos na literatura sobre o assunto, não existe ainda nenhum consenso sobre a origem do flúor no Universo. Pensem nisso na próxima vez que lavarem os dentes!

Este artigo foi baseado num outro de Ken Croswell para a revista Sky and Telescope (Setembro 2003) e numa revisão do estado da arte actual feita pelo autor.

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