Mal-entendidos sobre Ciência e Religião

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Nunca aqui publiquei artigos de crítica directa a outros artigos, contudo desta vez vou fazer uma excepção. Assim, este texto vai refletir um pouco da minha opinião pessoal, a qual é evidentemente parcial e discutível. Se o leitor se sentir incomodado com alguma das minhas observações, proponho-lhe que exponha os seus pontos de vista nos comentários.

Irei focar-me no recente artigo “Misconceptions of science and religion found in new study” (Mal-entendidos encontrados num novo estudo sobre ciência e religião). Se o leitor não tiver vontade de ler o artigo original em inglês, não se preocupe, porque em seguida traduzo as partes que quero comentar (sem remover um possível contexto que invalidasse a minha crítica). O estudo foi realizado pela socióloga Elaine Howard Ecklund e foi apresentado o mês passado na conferência anual da Associação Americana para o Progresso da Ciência (American Association for the Advancement of Science – AAAS).

O supracitado artigo começa assim: “A visão do público de que a ciência e a religião não podem trabalhar em colaboração é um equívoco que impede o progresso, de acordo com um questionário feito a mais de 10 mil norte-americanos, cientistas e protestantes evangélicos.”

Seria muito bom que o público tivesse efectivamente essa visão, porque é uma visão correcta. Infelizmente, embora talvez a generalidade compreenda que existe uma certa incompatibilidade entre a ciência e a religião, muitos não compreendem porque razão não pode haver maior complementaridade entre as duas. Primeiro convém constatar que a colaboração é impossível, porque a religião não tem nada para oferecer. Existe alguma tecnologia desenvolvida por alguma religião? Não. A única forma de obter novo conhecimento é através da ciência e do seu método. A religião tem um objectivo completamente diferente e não pode ajudar de forma nenhuma a ciência. Tudo o que a religião faz é criar um dado número de alegações que não pode provar, mas que não servem basicamente para explicar nada. Mesmo que “Deus” exista e tenha criado tudo isto, a questão do “como tudo isto funciona” mantém-se. Quando não se sabe algo, pode-se assumir o desconhecimento e tentar procurar uma forma de compreender, ou pode-se simplesmente assumir uma dada resposta. Qual será o caminho com maior probabilidade de sucesso?

“ – Nós descobrimos que quase 50% dos evangélicos acreditam que a ciência e a religião podem trabalhar juntos e suportarem-se mutuamente, – disse Ecklund. – Isto está em contraste com os apenas 38% dos americanos que sentem que a ciência e a religião podem colaborar.”

Como é evidente, os evangélicos podem pensar o que quiserem – é irrelevante para a questão. Se quisermos saber se é prejudicial à saúde de uma criança oferecer-lhe um rebuçado por dia, iremos fazer essa questão à criança? Poderemos tirar conclusões da resposta delas? No máximo ficaremos a saber que as crianças gostam de rebuçados…

“O estudo também mostrou que 18% dos cientistas frequentam semanalmente serviços religiosos, comparados com os 20% da população dos EUA…” [Segue-se uma exposição detalhada de percentagens, mostrando que os cientistas são em geral quase tão religiosos quanto a população em geral.]

De que modo é que isto é uma evidência seja para o que for? A religião faz parte da nossa herança cultural e social, e por isso não é de estranhar que tenha uma prevalência semelhante em indivíduos com diferentes percursos académicos. De qualquer forma, se se quer concluir algo, note-se então que todas as percentagens indicadas (que aqui omiti) são inferiores no caso dos cientistas. A diferença seria provavelmente superior se tivessem restringido o grupo dos cientistas ao das ciências exactas…

“Como exemplo, ela descobriu que é duas vezes mais provável um protestante evangélico consultar um livro ou líder religioso sobre questões sobre ciência, do que uma pessoa do público em geral (11%).”

 A questão necessária que se faz é o que terá essa pessoa aprendido.

“Quase 60% dos protestantes evangélicos e 38% de todos os questionados acreditam que os cientistas deveriam estar mais abertos a considerar milagres nas suas teorias e explicações.”

Qual a diferença entre acreditar num milagre ou afirmar-se que não se sabe a origem do fenómeno? É que o primeiro impede a procura de uma explicação lógica. Eu não sou dono da verdade, por isso não posso afirmar categoricamente que os milagres não existem. Partamos do princípio de que existem: como é que poderemos diferenciar um milagre de um fenómeno desconhecido? A supercondutividade, por exemplo, poderia parecer um milagre e isso poderia impedir-nos de a analisar convenientemente, de a compreender e de a usar. Se por outro lado um dia destes eu sem querer transformar água em vinho, isso poderá ser um milagre. No entanto, eu não irei acreditar que se trata de um milagre e irei estudar o fenómeno. Na pior das hipóteses perco tempo, porque se tratou mesmo de um milagre. Mas que maior conhecimento teria eu se assumisse de que se tratava de um milagre?

“Quase 36% dos cientistas questionados não têm dúvidas da existência de Deus.”

Cada pessoa é livre de acreditar no que quiser. Nem está em questão se podem demonstrá-lo ou não. O que interessa para o presente estudo é se isso faz deles melhores cientistas, ou se de algum modo essa crença lhes trouxe novo conhecimento. Para ambas as hipóteses a resposta é não.

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“A intersecção da ciência com a religião.”

Lê-se na inscrição: “Igreja da cura psicosomática.” O sacerdote diz: “Recebam este placebo. Pelo esquecimento da razão.”

14 comentários

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  1. Acredito que um dia a ciência consiga explicar tudo e a religião não sirva de escoro para qualquer explicação.
    Um dia a ciência vai explicar os casos de combustões espontâneas por exemplo.

    1. E que casos são esses? Ou só conheço aqueles cuja ciência explica, e os outros são meros mitos.

    • Renato Romão on 05/09/2014 at 12:37
    • Responder

    Incrível, este inquérito/estudo serve para quê?
    A AAAS são uma associação composta por cientistas isentos?
    (OU) É um estudo de mercado encomendado por empresários evangélicos a uma associação com fins/princípios dogmáticos?

    Começando por: “A visão do público de que a ciência e a religião não podem trabalhar em colaboração é um equívoco que impede o progresso, de acordo com um questionário feito a mais de 10 mil norte-americanos, cientistas e protestantes evangélicos.”, bem… o que eles pretendem com questões como esta é provar que os cientistas e que ciência é que estão “mal/errados”, e que deveria de facto paço a citar “Quase 60% dos protestantes evangélicos e 38% de todos os questionados acreditam que os cientistas deveriam estar mais abertos a considerar milagres nas suas teorias e explicações.”. O que eles vão/irão inventar para argumentar as suas ideias, que digamos para a ciência nada conta!
    Este estudo irá por certo ser utilizado em argumentações mais acesas.
    Enfim… “Quem não caça com cão, caça com gato”, pura manipulação argumentativa. Faz lembrar os políticos no parlamento a debaterem estatísticas do INE e os diversos pontos de vista para os mesmos resultados de dados estatísticos.
    Para mim… Não obrigado!

    Abraços!

  2. Para quem não leu o início deste artigo do Marinho, deixem-me realçar:

    Este artigo é uma crítica à forma como foi apresentado determinado estudo… é uma crítica às interpretações de determinado estudo.
    Não é uma crítica à religião ou à ciência.

    1. Acrescento ainda (realço novamente) que o artigo pretendia demonstrar que existe uma percentagem considerável de pessoas que acredita que a religião pode colaborar com a ciência. Além disso, embora a autora do estudo não expresse claramente a sua opinião, fica claramente implícito que ela também acredita nisso. Quando li o artigo senti obviamente um nó na garganta, porque ficou a faltar a discussão da hipótese, que para mim não tem sentido.

  3. “Quase 60% dos protestantes evangélicos e 38% de todos os questionados acreditam que os cientistas deveriam estar mais abertos a considerar milagres nas suas teorias e explicações.”

    Isto diz-me que eles não sabem o que é ciência… nem querem saber o que é ciência.

  4. Faço mais esta crítica a esse estudo:

    “Como exemplo, ela descobriu que é duas vezes mais provável um protestante evangélico consultar um livro ou líder religioso sobre questões sobre ciência, do que uma pessoa do público em geral (11%).”

    Ele deveria era consultar os cientistas sobre questões de ciência, e não pessoas do público ou líderes religiosos!

    1. It goes without saying. 🙂

    • Sandra Maria Carletti on 04/09/2014 at 01:29
    • Responder

    Até que enfim alguém criou coragem para se expor a favor da ciência. Não consigo entender o porquê das pessoas nem sequer se interessarem em estudar o mínimo para podermos conversar, trocar informações baseadas em comprovações. Só o medo e a repulsa dos fanáticos religiosos à ciência já os expõem ao “acreditar” e os distanciam do “saber”. Minha pequena e questionável opinião é que: o que leva o ser humano à religião não deixa de ser uma grande arrogância que vem desde os tempos primórdios onde se aprendia que somos o centro do Universo e por isso há de haver continuidade, não sendo possível sermos iguais aos “animais e plantas”. Porque não? Nosso DNA difere em apenas 1,02% dos gorilas. Eu, particularmente, tenho consciência de que tudo que há em mim tem a idade do Universo e continuará sendo após a coisa mais natural que é a morte. Obrigada pela permissão de opinar!

      • Renato Carvalho Souza on 04/09/2014 at 14:00
      • Responder

      Eu como crente não vi mal algum do post do Marinho. Triste de ver esse tipo de jargão da moça aí acima, porque coloca o extremismo dos ateus que a gente enxerga com muita frequencia na internet, é por causa desse tipo de coisa que me deixava sem qq vontade de saber mais sobre as ciências, parece que só existe crente idiota nesse mundo, mas ainda bem que existe pessoas como o senhor Cavalcanti que disse ser católico, que tem uma diplomacia fora do comum e percepção em separar muito bem as coisas, e aqui no astroPT Tenho sim aprendido muita coisa com o Doutor Carlos Oliveira e Sr. Cavalcanti,

      Assim:
      que não se acredita na ciência, que a ciencia e religiao podem viver no mesmo mundo, que essas revoltas existem nos dois lados. Abraco a todos.

    • Jonatas Buday on 03/09/2014 at 19:48
    • Responder

    Acho que voce estudou a ciencia, mas nao estudou a religiao e por isso sua opiniao é baseada em esteriotipos e preconceitos. Quero salientar, para que melhor entenda minha opiniao, que quando digo que voce nao estudou religiao digo no sentido de ler criticamente o Livro da mesma (seja ela qual for), e assimilar com as descobertas de hoje, tendo em mente que o texto foi escrito em um tempo que nao existia termos suficientes para os fenomenos presenciados, e que muito dos relatos descritos eram contados de boca para boca, e foi assim por muito tempo até o transcreverem em materiais frageis do qual mais palavras se perderam e, consequentemente, ficaram ainda mais dependentes de interpretacao. Agora eu deixo-lhe a pergunta: Com todas essas variacoes nos textos religiosos é viavel interpreta-lo de forma literal?
    Nao, e com isso deixo claro que a grande maioria dos que se dizem religosos sao leigos e o deus que seguem é criado a sua própria imagem e semelhanca e nao condiz em nada com o verdadeiro Arquiteto do Universo. Concluindo, a religiao e a ciencia sao barcos que seguem o mesmo rio porém a ciencia é nova demais para entender isso… Com isso gostaria de te dizer amigo, que voce leia mais sobre as semelhancas entre a ciencia e a religiao, por exemplo: No genesis as primeiras criaturas a serem criadas sao os “repteis de alma vivente” na biblia diz que apenas o homem tem alma,logo, genesis compara o homem a repteis que alguns milhoes de anos mais tarde, darao origem ao homem, segundo o brilhante Darwin.

    1. “genesis compara o homem a repteis que alguns milhoes de anos mais tarde, darao origem ao homem, segundo o brilhante Darwin.”

      Eu sugiro que aprenda ciência, nomeadamente Biologia. Recomendo que leia Darwin, porque ele nunca disse nada disso.

    2. O seu comentário evidencia desconhecimento e também falta de atenção àquilo que escrevi no artigo (recomendo-lhe, por isso, que o leia novamente). Não tenho qualquer estereótipo ou preconceito: olho apenas a factos.

      À questão que me deixa, eu respondo também: é claro que não! Porém, isso não implica que todos o façam. De facto, muitos religiosos crêem nos textos “sagrados” de forma literal. Neste artigo refiro-me muitas vezes a eles. Por outro lado, é preciso ter cuidado com este raciocínio: se não é literal, então qual é a “verdade”? As interpretações conduzem muitas vezes a significados ambíguos e divergentes. Muitos religiosos vão-se protegendo com o argumento de que algo não é literal, mas na verdade, ainda num passado recente, foi literal! Ora, é muito conveniente mudar a interpretação ao longo do tempo. Poderá ler, relacionado com isto, sobre o chamado “deus das lacunas”.

      Você depois diz que muitos dos “religiosos são leigos” – com que autoridade poderá dizer isto? Existem líderes religiosos que não concordam consigo! Basicamente você está a desvalorizar a fé de todos aqueles que têm uma fé diferente da sua.

      A Ciência é nova demais para entender o contributo da religião? Se você pensar um pouco irá compreender que isso não faz qualquer sentido. Se a religião tem contributos a dar, então que os dê, porque ainda não se viu nada!

      Quanto a semelhanças, é sempre possível encontrá-las em tudo o que se desejar. E quanto às diferenças? São negligenciadas para que o padrão não fique destoado! Novamente: é muito conveniente definir o que é literal e o que não é, depois de se saber aquilo que se pretende concluir… Porque raio a religião teve que esperar pela ciência para poder chegar a essa conclusão? Deste modo não está a fornecer qualquer conhecimento, mas simplesmente a adaptar as suas interpretações a conhecimento já existente, proveniente da ciência. Concluindo: a religião não está a fornecer qualquer mais valia à ciência.

      Cumprimentos,
      Marinho

  5. Concordo plenamente.

  1. […] aqui falei sobre ciência e religião (ver os Mal-entendidos sobre Ciência e Religião), mas ficou muito por dizer. Irei aqui continuar essa divagação. Assim, este artigo terá também […]

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