O cérebro do ganso e o tórax do gafanhoto

O título da presente nota soou como o de uma das coletâneas de Gould? Foi proposital. Quando eu entrei na faculdade pela primeira vez, no comecinho da década de 90, tive meus primeiros contatos com os livros de Stephen Gould e seus títulos peculiares: “O sorriso do flamingo”, “O polegar do panda”, “Os dentes da galinha e os dedos do cavalo”… Felipe Arley, meu grande amigo desses anos de neófito, zombava de Gould por causa disso: referia-se a ele como “aquele cara” que escreveu A língua do morcego, ou O pâncreas do urso, ou O cotovelo do rinoceronte… É bem simples: basta apenas unir um substantivo a um genitivo.

Ao falar do cérebro do ganso, estava na verdade pensando em qualquer ave que dependa substancialmente do vôo. Escolhi o ganso por um comentário que Konrad Lorenz tece em seu “Here I am – where are you? The behavior of the greylag goose”, que detalharei mais abaixo. Ao falar do tórax do gafanhoto, estava pensando no tamanho de um inseto em particular, e o gafanhoto, apesar de não ser o maior entre os insetos atualmente existentes, é o maior entre os insetos popularmente conhecidos, e de fácil visualização. E em que essas duas coisas se relacionam?

O objetivo desta presente e breve nota é mostrar que, uma vez que determinada população tenha tomado certo “caminho” evolutivo, ou seja, tenha adotado uma determinada estratégia frente a outras estratégias possíveis, há uma limitação natural e lógica em relação aos destinos que tal população poderá ter, uma vez que a população encontrar-se-á historicamente restringida. Em termos um pouco mais simples, o que eu denominei aqui de restrição histórica pode ser facilmente compreendido quando comparamos uma estrutura bastante especializada com uma estrutura mais generalista, portanto menos especializada: uma estrutura menos especializada pode variar de forma bem mais livre que uma estrutura mais especializada. Trata-se de um conceito comum entre os biólogos evolutivos, mas infelizmente pouco conhecido do público leigo, quando discute ou pensa no processo evolutivo.

O que se dá é que comumente ouvimos que a evolução é um processo maravilhoso, de infinitas possibilidades, capaz de, havendo tempo e condições necessárias, criar uma quantidade inimaginavelmente grande de formas e fisiologias possíveis. Essa é uma alegação bastante correta e pertinente, e todos nós que amamos as várias e diversas expressões da vida não nos cansamos de exaltar a aparentemente infinita criatividade do processo evolutivo. Mas há que se ter cuidado com certas conseqüências de frases aparentemente inócuas como essas. Da exaltação da exuberância da biodiversidade à alegação de que qualquer forma de vida pode evoluir de qualquer maneira é apenas um passo (para o público geral, certamente).

Diferente do público leigo, os biólogos evolutivos encaram isso de outra forma: quando dizemos que a evolução é capaz de criar as mais lindas e surpreendentes estruturas, estamos nos referindo a diferentes histórias de vida, a processos bastante particulares. A cauda do pavão é uma dessas maravilhas evolutivas, que surgiu na linhagem histórica do pavão. A imponente estatura da sequóia é outra dessas maravilhas, que surgiu na linhagem histórica da sequóia. Contudo, dizer que a evolução é capaz de qualquer coisa é claramente um absurdo: não podemos afirmar que o pavão pode evoluir para qualquer morfologia imaginável, nem também a sequóia. Não há a menor possibilidade dos galhos da sequóia formarem penas como na cauda do pavão, nem de no dorso do pavão surgir um caule com folhas fotossintetizantes. O exemplo que acabei de dar é tão imensamente absurdo que qualquer pessoa leiga facilmente percebe o que quero defender, e certamente concorda. O problema é que, em biologia evolutiva, há situações bem mais subtis, nas quais é fácil nos enganarmos.

O que passarei a descrever está no contexto das “tendências evolutivas”. Na história evolutiva de uma dada população, certas escolhas parecem ser melhores que outras, e essas escolhas são portanto selecionadas. O que ocorre é que quando a população evolui através dessas escolhas, modificando tal ou tal estrutura, ela fica cada vez mais comprometida com aquele caminho em particular. Esse comprometimento vai progressivamente diminuindo a amplitude das possibilidades, das estruturas que poderiam surgir no futuro. O “cérebro do ganso” no título dessa nota tem a ver precisamente com isso, e é um dos exemplos que mais gosto de dar.

O ganso cinza (fonte: Science Photo Library).

O ganso cinza (fonte: Science Photo Library).

Quando falo que as aves são um grupo animal inteligentíssimo, no qual encontramos certas espécies simplesmente impressionantes, tenho sempre que lembrar a restrição histórica que nos faz ficar surpresos com tamanha inteligência: as aves voam. Ao comprometerem-se com o vôo, os ancestrais desse grupo (quase que certamente monofilético…) comprometeram-se com uma arquitetura corporal que, entre outras coisas, está relacionada com uma enorme redução da massa corporal. Desta forma, mesmo que haja vantagens num encéfalo grande e com uma capacidade cognitiva aumentada, como é o caso dos mamíferos e particularmente dos primatas, as aves possuem uma restrição histórica que não permite que seus cérebros cresçam à vontade, livremente. Lorenz, no seu livro sobre o comportamento do ganso cinza, fala a mesma coisa, ao enaltecer o comportamento tão maravilhosamente complexo num organismo que, mesmo corpulento em relação às demais aves, não pode desenvolver o cérebro de forma livre e irrestrita. Em relação às aves que não voam, como a avestruz e a ema, essa restrição não existe: hipoteticamente, seus cérebros poderiam ser maiores (se houver necessidade evolutiva disso). Não tenho nenhuma informação sobre a razão massa cerebral/massa corporal em aves que não voam, e se alguém souber algo sobre isso, agradeço se deixar algumas linhas lá embaixo nos “comentários”.

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Outro exemplo de restrição evolutiva ocorre no quase ubíquo grupo dos insetos. A respiração traqueal é uma excelente forma de evitar a perda de água nas superfícies respiratórias, bem mais eficaz que nossa respiração pulmonar. Porém, ela tem suas desvantagens: um inseto dificilmente conseguiria oxigenar adequadamente seus tecidos se crescesse para além de 25 ou 30 centímetros. Certamente já existiram insetos com quase 40 centímetros de comprimento durante o carbonífero, mas tratam-se de períodos em que a pO2 era bem maior que os atuais 21%. A respiração traqueal, associada ao exoesqueleto externo (que é eficaz para os pequenos tamanhos de uma formiga ou de uma mosca, mas bastante ineficaz para as proporções de um elefante, por exemplo), impede que um inseto evolua para qualquer tamanho. Apesar disso, lembro-me de há muitos anos ter visto nessas madrugadas insones um filme horrível, com a Mira Sorvino, bebendo cerveja e comendo doritos (eu, não ela; certas frases são propositadamente dúbias), em que os insetos de Nova York sofreram mutações, ou sei lá o que foi que ocorreu, e cresceram para o tamanho de seres humanos! Certos filmes são tão ruins, mas tão ruins, que é até divertido assistir.

1 comentário

  1. Parabéns pelo texto Gerardo, vc me ajuda muita nos trabalhos da facul Te sigo também no Biologia Evolutiva

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