A evolução humana

Há uma pergunta bastante famosa no ambiente da biologia evolutiva. Curiosamente, eu não a abordei no meu livro — pois minha intenção era a de escrever uma explicação breve e concisa sobre alguns conceitos básicos. Eis a pergunta:

A espécie humana ainda evolui?

Da maneira como está formulada a pergunta contém um erro, que pode até passar despercebido para um leitor leigo, mas não para um biólogo evolutivo. Espécies não evoluem, ou, melhor ainda, não deveriam ser usadas como unidades evolutivas. O mais correto seria falar de populações e não de espécies. Uma população de uma dada espécie pode evoluir numa velocidade acelerada, enquanto outra população da mesma espécie pode se manter praticamente inalterada. Uma população pode evoluir de uma maneira, enquanto outra população, da mesma espécie, pode tomar um caminho evolutivo completamente distinto, levando a uma especiação. Portanto, o melhor seria perguntar:

As populações humanas ainda evoluem?

A resposta mais comum para essa pergunta é não. “A humanidade não evolui mais”, “a civilização interrompeu o processo evolutivo”, “a medicina, com suas profilaxias e terapias, eliminou a seleção natural” são alegações bastante comuns. Mas, antes de darmos certos factos como garantidos, convém que façamos uma análise mais detalhada. E já posso adiantar a resposta que darei a essa pergunta: sim, as populações humanas ainda evoluem, ao contrário da opinião leiga sobre evolução humana.

Para fazermos nossa análise, temos que definir algumas coisas de antemão. Vamos, primeiramente, definir o que é evolução.

No final do meu livro há um pequeno glossário, onde eu defino evolução como sendo, “de forma estrita, a mudança, ao longo do tempo, nas proporções de entidades biológicas, diferindo geneticamente umas das outras.” Vamos ver como alguns dos principais livros de biologia evolutiva e de biologia geral definem evolução:

– In a broad sense, the origin of entities possessing different states of one or more characteristics, and changes in their proportions over time. (Futuyma, “Evolutionary Biology”)
– Changes in the frequency of alleles within a gene pool from one generation to the next. (Curtis & Barnes, “Biology”)
– Evolution means change, change in the form and behavior of organisms between generations. (Mark Ridley, “Evolution”)
– Biological evolution entails inherited changes in populations of organisms, over time, that lead to differences among them. (Monroe Strickberger, “Evolution”)
– A population evolves as the proportions of different kinds of individuals within it change. (Nicholas Barton, “Evolution”)

Há uma palavra que se repete em todas as definições. Você a encontrou? Leia de novo, desta vez procurando-a. A palavra é change(s). E isso que nos leva a essa definição do Futuyma:

– Today “evolution” has come to mean, simply, “change”. (Futuyma, “Evolution”)

Aliás, eu acabei de escrever sobre isso na postagem passada, onde eu discuti a falseabilidade da biologia evolutiva. Portanto, se definirmos, de forma estrita, evolução como alterações genéticas ao longo do tempo, a resposta para a nossa pergunta (“as populações humanas ainda evoluem?”) deve ser sim.

Creio que a demonstração seja bastante fácil e não suscite controvérsias. Não precisamos voltar ao surgimento do Gênero Homo, não precisamos nem mesmo remontar ao surgimento da Espécie Homo sapiens. Podemos começar com uma data bem mais próxima de nós, a revolução agrícola, há aproximadamente 10 mil anos, que muitos definem como o marco inicial da civilização humana. Pois bem, para que as populações humanas não tenham mais evoluído desde o surgimento da civilização (ou seja, desde o neolítico, marcado pela revolução agrícola), devemos mostrar que todas as populações humanas mantiveram todas as frequências alélicas de todos os seus loci inalteradas. Eu creio que podemos concordar que essa é uma alegação completamente falsa, mesmo sem fornecer referências bibliográficas. É bastante óbvio que as frequências alélicas mudaram e continuam mudando, em praticamente todas as populações. Além do acaso, as guerras, invasões, miscigenações, fundação de novas colônias, todos esses são processos que mudam as frequências alélicas. Portanto, a resposta para a pergunta “as populações humanas ainda evoluem?” é sim.

Já tendo deixado esse ponto pacífico, vamos nos aprofundar. Para quem está familiarizado com a biologia evolutiva, foi fácil perceber que o que eu acabei de alegar é que as populações humanas evoluíram, e continuam evoluindo, por deriva genética. A deriva é um fenômeno ubíquo, que tem muito mais a ver com os princípios da matemática e da estatística que com os da biologia, e já nos basta para afirmarmos que praticamente todas as populações de todas as espécies continuam a evoluir (principalmente se analisarmos genes fracamente selecionados ou, melhor ainda, regiões não codificantes). Mas boa parte das pessoas leigas, quando fala de evolução, pensa em seleção. Que o ser humano ainda evolui já ficou claro. Vamos então nos perguntar, “o ser humano ainda evolui por seleção natural”?

Costumamos dizer que, desde o surgimento da civilização e, mais ainda, desde o surgimento da medicina moderna, no século XIX, não há mais seleção natural entre seres humanos. Por exemplo, ouvimos dizer que se um casal tem três filhos, um cego, um paralítico e um normal, na natureza, o cego e o paralítico morreriam antes que o normal, enquanto que no ambiente civilizado, com os cuidados médicos e sociais, o cego e o paralítico teriam uma longevidade tão grande como a do normal. Eu mesmo já usei exemplos como esse com alunos do Ensino Médio, para ilustrar como a seleção tornou-se menos poderosa com o surgimento da civilização. Mas esse é um pensamento simplista e, em sua essência, incorreto. A seleção natural não desapareceu das populações humanas, muito menos de todas as populações humanas. A medicina, por exemplo, não atinge a todos, assim como a assistência social e os programas de apoio não atingem. Não há porque acharmos que a seleção deixou de ocorrer entre os seres humanos civilizados. Porém, contrariamente à minha alegação de que a deriva ainda ocorre nos dias de hoje (conclusão bastante óbvia), a alegação de que ainda há seleção entre os humanos é um pouco mais grave e, portanto, requer algumas provas, algumas referências.

Poucas coisas fazem uma população evoluir mais rápida e radicalmente que um patógeno. Aliás, a importância dos patógenos é tão grande que eles podem ter sido responsáveis por um dos maiores mistérios da biologia evolutiva, que é o surgimento da reprodução sexuada. E, falando sobre populações humanas, temos exemplos bem recentes do poder dos patógenos: a gripe espanhola há 100 anos, a varíola dizimadora de astecas há 500 anos e a peste negra, que há 700 anos eliminou quase um terço da população europeia.

“O triunfo da morte”, de Pieter Bruegel, 1562. Algumas pessoas dizem que Brueguel, nesse quadro, retrata a passagem da peste pela Europa, mas muito provavelmente esse não é o tema da obra. Independentemente disso, é uma pintura excepcional.

“O triunfo da morte”, de Pieter Bruegel, 1562. Algumas pessoas dizem que Brueguel, nesse quadro, retrata a passagem da peste pela Europa, mas muito provavelmente esse não é o tema da obra. Independentemente disso, é uma pintura excepcional.

400 anos antes da peste negra, uma etnia chamada Rroma (ou simplesmente ciganos) migrou da Índia para a Europa oriental. Os ciganos casavam principalmente entre si e muito poucos casamentos ocorriam com os europeus, o que fez com que a atual Romênia tenha dois grupos étnicos bem distintos, os europeus e os rroma, o que será fundamental para o estudo que irei citar: uma equipe holandesa analisou o material genético de romenos europeus, de rromas (ciganos) e de indianos. O estudo, intitulado “Convergent evolution in European and Rroma populations reveals pressure exerted by plague on Toll-like receptors”, foi publicado na PNAS.

Os autores mostraram que há maiores semelhanças entre os rroma e os indianos que entre os rroma e os europeus, e até aqui não há nenhuma surpresa. Porém, para um determinado grupo de genes, há uma maior semelhança entre os rroma e os europeus que entre os rroma e os indianos. Trata-se de genes para os TLR (toll-like receptors), proteínas membranares relacionadas com o sistema imune e com infecções bacterianas.

Os autores explicam que os rroma e os europeus, apesar de etnicamente distantes, foram submetidos às mesmas pressões seletivas, nomeadamente a grande praga de 1348. Assim, a seleção promovida pela bactéria Yersinia pestis deixou uma clara cicatriz genética e evolutiva nos europeus e nos rroma (que, afinal de contas, por viverem na Europa, passaram a ser europeus), mas não nos indianos.

As populações humanas evoluem, não só por deriva, mas também por seleção. “E onde essa evolução vai nos levar?”, alguém poderia perguntar, já imaginando um desses documentários sensacionalistas sobre o futuro da humanidade. É uma pergunta que não pode ser respondida, pelo facto de não fazer muito sentido: populações diferentes evoluem de formas diferentes, e podem tomar rumos bem distintos.

2 comentários

  1. Evolução significa modificação na espécie, não necessariamente para o bem.
    Além de que, nem podemos mesmo definir oq seja “bem”.

    Mas na medida que nos últimos séculos modificamos o equilíbrio de raças no mundo, houve uma evolução, anulando as raças menos competidoras..

    • Graciete Virgínia Rietsch Monteiro Fernanbdes on 20/09/2014 at 12:40
    • Responder

    Este assunto é muito difícil para mim, tanto mais que a pouca BIOLOGIA que aprendi está muito distante do que é a BIOLOGiA hoje.
    Da leitura destes textos fiquei com uma ideia,não sei se correta. A evolução genética e a seleção natural dependerão do meio social em que vivem os seres vivos, no caso particular os humanos? Será?
    Parabéns pelos textos. Acho que são muito bons.

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