Por que não perturbar os físicos?

Seguindo a linha do que foi discutido numa postagem passada, é chegado o momento de eu deixar uma ou duas linhas sobre o prejuízo que (alguns) religiosos causaram e têm causado ao ensino das ciências, e em especial ao ensino da biologia evolutiva. É a primeira vez que falarei sobre esse assunto, porque não tenho e nunca tive paciência para esse tipo de discussão, que considero absurda e anacrônica. É como se, em pleno século XXI, eu tivesse que defender e comprovar o heliocentrismo. Eppur si muove…

Para que eu possa chegar à pergunta que dá título a essa breve nota, convém que façamos aqui uma rápida introdução, à guisa de esclarecimento. Jesus de Nazaré é uma figura histórica que dispensa maiores apresentações. Sim, escrevo aqui figura histórica porque, apesar de menos bem documentado que Sócrates, por exemplo, não restam dúvidas acerca da existência desse personagem, existência essa que vários anticlericais chegam a negar. Certamente, não estou aqui afirmando que ele tenha andado sobre as águas ou multiplicado pães, estou apenas me referindo ao personagem histórico. Muito bem, tendo nascido na província romana da Judeia, Jesus seguramente conhecia a lei mosaica, e deveria observá-la. Em outras palavras, Jesus era um judeu.

O livro sagrado dos judeus é o Tanakh, acrônimo formado por Torá (o Pentateuco), Nevi’im e Ketuvim. É na verdade um conjunto de livrinhos, e não um único livro. Em sua primeira parte, o Torá, mais especificamente no primeiro livro do Torá, o Gênesis, há um mito de criação (curiosamente, há não apenas um, e sim dois mitos de criação no Gênesis. Esse é um assunto bem curioso, mas que deixarei de lado, por não nos interessar aqui).

Nesse ponto alguns leitores podem se enfurecer e afirmar que eu estou sendo desrespeitoso. É importante deixar claro que devemos respeitar a liberdade de pensamento e de expressão (que engloba a liberdade religiosa) dos seres humanos, e não o pensamento ou a expressão em si, que não tenho nenhuma obrigação de respeitar. Traçando um paralelo, é como se eu tivesse que respeitar a opinião dos espíritas de que espíritos desencarnados vagam entre nós e são capazes de se comunicar conosco. O que devo respeitar é o direito dos espíritas de expressar essa opinião, e não a opinião em si, que julgo uma completa fantasia. Da mesma forma, devemos respeitar o direito dos budistas de expressarem seus pensamentos sobre a metempsicose, mas não temos obrigação de respeitar a metempsicose em si (que é uma fantasia maior ainda). Desta forma, me referirei aos eventos do Gênesis pelo que eles são, um mito de criação, e nada além disso, como tantos outros mitos de criação que, por contingências históricas, não atingiram a mesma fama nos dias de hoje. Falarei sobre isso novamente quando citar a edição pastoral do Gênesis, daqui a alguns parágrafos.

Continuando, Jesus dá origem a uma nova religião, o cristianismo. Mas aqui ocorre algo verdadeiramente curioso, para não dizer incompreensível: além dos evangelhos e dos livros de Paulo, que são a base textual dessa nova religião, o cristianismo trouxe também para si o Tanakh, o livro dos judeus, e o renomeou de antigo testamento. O resultado dessa curiosa fusão de dois “livros” e duas religiões bem distintas é que, quando nos séculos seguintes o cristianismo se espalhou pelo mundo ocidental, acabou disseminando o mito de criação judaico, presente no primeiro livro do Tanakh. Desde então, esse é de longe o mito de criação mais popular do mundo ocidental, e incontáveis cristãos têm acreditado nesse mito de criação de forma literal.

Convém notar que essa interpretação literal do mito de criação contido no Tanakh não é a opinião oficial atual da principal vertente do cristianismo, o catolicismo. Por incrível que pareça, a citação a seguir foi escrita não por um cientista, nem por um divulgador das ciências, e sim por um Papa, Karol Wojtyla, mais conhecido por João Paulo II. A mensagem à academia pontifícia de ciências (22 de outubro de 1996) tem o interessante título de “A verdade não pode contradizer a verdade” (a mensagem pode ser lida na íntegra aqui):

In his encyclical Humani Generis (1950), my predecessor Pius XII has already affirmed that there is no conflict between evolution and the doctrine of the faith regarding man and his vocation, provided that we do not lose sight of certain fixed points. […]

Today, more than a half-century after the appearance of that encyclical, some new findings lead us toward the recognition of evolution as more than an hypothesis. In fact it is remarkable that this theory has had progressively greater influence on the spirit of researchers, following a series of discoveries in different scholarly disciplines. The convergence in the results of these independent studies—which was neither planned nor sought—constitutes in itself a significant argument in favor of the theory.

What is the significance of a theory such as this one? To open this question is to enter into the field of epistemology. A theory is a meta-scientific elaboration, which is distinct from, but in harmony with, the results of observation. With the help of such a theory a group of data and independent facts can be related to one another and interpreted in one comprehensive explanation. The theory proves its validity by the measure to which it can be verified. It is constantly being tested against the facts; when it can no longer explain these facts, it shows its limits and its lack of usefulness, and it must be revised.

Moreover, the elaboration of a theory such as that of evolution, while obedient to the need for consistency with the observed data, must also involve importing some ideas from the philosophy of nature.

Como se não bastasse, a própria Bíblia já deixa claro que o mito de criação não deve ser interpretado de forma literal. Eis a nota de rodapé da Edição Pastoral, uma edição aprovada pela Igreja Católica em Roma, referente ao primeiro capítulo do Gênesis:

A narrativa da criação não é um tratado científico, mas um poema que contempla o universo como criatura de Deus. Foi escrito pelos sacerdotes no tempo do exílio na Babilônia (586-538 a.C.)

Um poema, e não um tratado científico. Contudo, inúmeros cristãos ainda interpretam o mito de criação judaico do Tanakh de forma literal, e tentam obstruir de toda forma o ensino da biologia evolutiva. Do famoso caso Scopes à atual e constrangedora atitude da Coreia do Sul, exemplos não faltam. O que nos remete à pergunta: por que não perturbam os físicos? Ou, o que dá no mesmo, porque não perturbam os geólogos, que bem antes dos biólogos evolutivos do século XIX já afirmavam que a Terra tinha bem mais que seis mil anos?

A relação de uma interpretação literal do mito de criação do Tanakh com os físicos é bem simples. Edwin Hubble demonstrou, na década de 20, que as galáxias (seria mais correto falarmos em grupos de galáxias) afastam-se umas das outras, numa velocidade proporcional às suas distâncias. As pesquisas de Hubble (o famoso telescópio espacial foi assim batizado em sua homenagem) levaram Georges Lamaître, um padre (!) e cosmologista belga a propor, na década de 30, que o universo teve origem numa singularidade, o famoso Big Bang, hipótese que foi aprimorada por George Gamow na década de 40. A descoberta da radiação cósmica de fundo por Penzias e Wilson, na década de 60, deixou poucas dúvidas a respeito da ocorrência do Big Bang, cujas medições atuais situam a 13,75 bilhões de anos no passado.

Edwin Hubble, astrônomo norte-americano.

Edwin Hubble, astrônomo norte-americano.

Todos os professores de física dão aulas tranquilamente, falam sobre o Big Bang, o afastamento das galáxias e o efeito Doppler sem serem perturbados. De forma parecida, os geólogos falam sobre o depósito de materiais, a orogênese, a sucessão das eras geológicas e diversos outros fenômenos, cujo desenrolar ocorre na casa dos milhões ou das dezenas de milhões de anos, igualmente sem serem perturbados, sem sofrerem ataques. Não costumamos ler nos jornais que fundamentalistas querem proibir o ensino da física, ou que querem pôr etiquetas constrangedoras (para eles!) nos livros de geologia. Então, por que o ataque à biologia evolutiva especificamente?

Minha opinião é bem elementar, e Freud já havia falado algo parecido em 1924. A questão não é o fato da biologia evolutiva se opor a um mito de criação, coisa que a física e a geologia fazem sem despertar grande fúria… o problema é outro: a biologia evolutiva, ao retirar o Homo sapiens do pedestal da criação, ao equipará-lo a outras espécies como fruto de um processo histórico, constitui um golpe duro demais para o patológico orgulho humano.

Com a biologia evolutiva, aprendemos que o ser humano é apenas mais uma espécie animal, notável, espetacular, mas apenas mais um animal. Com a biologia evolutiva aprendemos que o mundo vivo se transforma incessantemente. Com a biologia evolutiva aprendemos que todos os seres vivos do planeta estão relacionados, estão todos conectados uns com os outros, formando essa imagem belíssima que é a árvore da vida. Mas, aparentemente, o que para mim é algo encantador e admirável é para muitos uma ofensa e uma indignidade inaceitáveis.

13 comentários

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  1. Não sei se entendi o que quis dizer, mas por favor, não coloque a mão na comida de seu cachorro de estimação, principalmente quando este estiver com fome e se for um pastor alemão, pois ele só irá seguir seu instinto , indo sempre a favor ou do que lhe dá prazer imediato, ou do que o fará sobreviver, neste caso ele não terá moral nenhuma em deixar de te morder pois não tem consciência não só de religião nenhuma , mas também de regras,só seguindo-as se já tiver passado pelas consequências de uma mesma situação, não tendo o raciocínio lógico para analisar situações novas sem seguir seu instinto. Até mesmo aqueles que caçam em grupos, quando passam fome, um ataca o outro!
    De qualquer forma o que eu quis destacar na minha última mensagem é que não importa quem escreveu ou quem
    propôs a filosofia religiosa, se foi Jesus , ou João ou… , o importante é que foi escrito .

    1. Quem escreveu foi o Manel…

      De resto, a história do cão nada tem a ver porque não comporta qualquer regra moral.
      Novamente, sugiro que leia sobre moral nos animais antes de falar de cães a utilizarem o instinto.

      abraços

    2. Estou certo que o cidadão nunca leu absolutamente nada a respeito de comportamento animal. Inclusive, sobre o comportamento social e regras de conduta que existem, em alcatéias por exemplo.
      Sem falar que a moral religiosa é mais indefinida do que qualquer moral natural; na própria origem cristã era moral queimar pensadores, ateus ou homossexuais, apedrejar professoras, imoral um casal infeliz no casamento se separar, etc e etc.

  2. Sei que escrevi que não tinha tempo, mas não resisti à vontade de comentar.
    Apesar de não concordar e achar irracional algumas afirmações de muitas religiões, devo aceitar que a maior parte está certa e é muito importante para a humanidade pois recomendam atitudes certas e boas, o que de uma forma ou de outra, fazem a sociedade se comportar de forma íntegra. Acho a religião tão ou mais importante do que muitas descobertas da ciência.
    Sabemos que tais afirmações religiosas existem e são reais (Bíblia, por exemplo) e se existem , não apareceram do nada, alguém as estruturou, não importando o seu nome: se Jesus , Antônio, José …
    Logo se Jesus não existiu, pouco importa, o importante é quem formulou as idéias destas religiões existiu , fez a sua missão e ajudou muito a humanidade pois o importante foi a mensagem deixada, desde que esta seja interpretada de forma correta.
    Na verdade acho que toda pessoa sente quando está fazendo algo certo ou errado.
    Já ouvi falar de alguns Físicos que o certo e o errado é relativo, porém cuidado para não confundir o menos errado com o certo.
    Sei que tem pessoas que não observam pois acham que ainda estão longe da hora de morrer, mas acho que todos nós quando chegar a hora, vamos querer morrer com a consciência tranquila, pois, para mim, todas as nossas ações , mais cedo ou mais tarde provocará uma reação proporcional, como se fosse a lei universal de ação e reação, contanto com o fato que provavelmente nós sempre faremos parte do universo.

    1. Sócrates, você está a argumentar que são as religiões que dão regras morais à sociedade… quando isso não é verdade.

      Pode ler sobre estudos em diversos animais (sobretudo aqueles mais chegados a nós), e eles também dispõem do mesmo código moral. E não precisam de quaisquer religiões nem quaisquer crenças em seres superiores, para o terem.
      Ou seja, eles fazem isso porque é o correto, e não por medo do que pode acontecer após morrerem. Eles não fazem as coisas por interesse, como os humanos.

      abraços

        • Nuno on 29/09/2014 at 00:38

        Boa noite Carlos Oliveira.

        Está aí um tema muito interessante e cheio de controvérsia. A moralidade inserida na evolução da espécie Humana.

        Cumprimentos

        Nuno

  3. Gostei do texto, mas a frase “não restam dúvidas acerca da existência desse personagem, existência essa que vários anticlericais chegam a negar” é pura opinião pessoal e destoa do contexto da dissertação, bem racional. não há qualquer prova histórica sobre a existência de Jesus, basta pesquisar em fontes sérias.

    1. Fiquei espantado em descobrir que você sabe mais sobre mim do que eu mesmo (quando afirmou “é pura opinião pessoal”).

      – Bart Ehrman (secular agnostic), in a 2011 review of the state of modern scholarship: “He certainly existed, as virtually every competent scholar of antiquity, Christian or non-Christian, agrees” B. Ehrman, 2011 Forged : writing in the name of God ISBN 978-0-06-207863-6. page 285
      – Michael Grant (classicist): “In recent years, ‘no serious scholar has ventured to postulate the non historicity of Jesus’ or at any rate very few, and they have not succeeded in disposing of the much stronger, indeed very abundant, evidence to the contrary.” in Jesus: An Historian’s Review of the Gospels by Michael Grant 2004 ISBN 1898799881 page 200
      – Amy-Jill Levine: “There is a consensus of sorts on a basic outline of Jesus’ life. Most scholars agree that Jesus was crucified by Roman soldiers during the governorship of Pontius Pilate”, in The Historical Jesus in Context, edited by Amy-Jill Levine et al. Princeton University Press ISBN 978-0-691-00992-6 page 4.

      Minha “opinião pessoal”, caso interesse (coisa que duvido) a algum leitor do AstroPT, é que as religiões em geral e o cristianismo em particular são um triste delírio coletivo, um comportamento infantil. Fatos históricos, porém, devem ser discutidos e analisados por historiadores.

        • Roberto Souza on 27/09/2014 at 16:53

        Esse regis mais parece esses ateus nervosinhos. chega enche o saco afffffff

        Parabéns ao astroPT pela genialidade!!!!!!!!!!!

  4. Bom, nesse artigo que escrevi a um tempo atráz, eles sim perturbam os físicos e os geólogos :p

    Os de terra jovem são os piores, se é que é possível haver piores.

  5. Muito bom post Gerardo Furtado.

    Os seus 2 ultimos paragrafos respondem integralmente á pergunta.

    Penso que chegou o momento de dizer que a ciencia comeca a ter um “pouco de culpa” nisto tudo.
    isto é o resultado de “deixar” proliferar criacionistas, religioes e banhas de cobra…

    -Se 99% das religioes se baseiam em “personagens” que tinham super poderes, e se a CIENCIA nos dias de hoje prova cientificamente que sao completamente absurdas, porque nao dizer basta de mentiras?

    -Se a CIENCIA nos dias de hoje prova cientificamente que o Criacionismo é falso, porque nao dizer basta de mentiras?

    A resposta será sempre que temos que respeitar a opiniao dos outros nao é? Até ao momento alguns cientistas pensam que sim. Eu nao estou de acordo, basta recuar um pouco na história e perguntar o que aconteceria se Galileo Galilei nao tivesse tido a coragem de “desrespeitar” a opiniao da comunidade

    Bem haja ao Astropt pela divulgacao cientifica.

    • Mário Sotomaior on 26/09/2014 at 05:34
    • Responder

    Muito bom,este artigo! Parabéns ao autor.
    Quem fala de assuntos que domina, usa uma linguagem clara e acessível.

    Realmente o que choca os criacionistas,é pôr os humanos no mesmo plano das outras espécies.
    Quando por vezes me questionam de forma depreciativa, se descendo de um macaco, respondo assim:
    Eu, o macaco e uma oliveira temos seguramente um antepassado comum.

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