O Rio Erídano e a Tragédia de Faetonte

A constelação do Erídano está intimamente ligada ao mito de Faetonte, filho do deus solar Hélio e da ninfa oceânica Climene. O casal tinha também várias filhas conhecidas por Helíades. Quando Faetonte nasceu, Hélio prometeu a Climene que nunca recusaria um pedido do filho e revelou-lhe também a localização do seu refúgio no firmamento. Já crescido, e informado por Climene que era filho de Hélio, Faetonte viu-se confrontado com a incredulidade dos companheiros quanto à sua origem divina. Um dia, com a ajuda de Climene, Faetonte decidiu procurar o pai. Quando chegou ao refúgio de Hélio, este cumpriu a promessa e concedeu-lhe um desejo. Encantado com o movimento da quadriga conduzida pelo pai no firmamento, Faetonte pediu para substituí-lo durante um dia.

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[Cerâmica grega ilustrando a quadriga com quatro cavalos alados em que viajava Hélio, o deus solar, durante o dia (séc. V a.C.). Crédito: British Museum.]

Hélio tentou demovê-lo do seu propósito, descrevendo-lhe os vários perigos que encontraria pelo caminho — as tenazes do Escorpião e do Caranguejo, as garras do Leão, a flecha do Sagitário, os cornos do Touro. Apercebendo-se de que não seria bem sucedido, Hélio aconselhou-o então a seguir as trilhas deixadas pela quadriga nos dias anteriores, evitando estes perigos, e chamou-lhe a atenção para a natureza selvagem, difícil de dominar, dos cavalos alados que puxavam a quadriga.

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[Faetonte cai da quadriga solar e despenha-se no rio Erídano, que nasce aos pés de Orionte. Pintura da esfera celeste por Giovanni de Vecchi e Raffaellino da Reggio. Abóboda da Salle de la Mappemonde (1574–1575), no Palácio de Caprarola, em Farnese, Itália.]

Faetonte, na sua juventude, não levou as palavras do pai a sério e a sua viagem transformou-se rapidamente num pesadelo. Incapaz de controlar o ímpeto dos cavalos, levou primeiro a quadriga para tão alto que a Terra ficou enregelada. Ao aperceber-se do erro, tentou corrigir a trajectória mas desceu para tão perto da superfície que a vegetação pegou fogo, formaram-se desertos, secaram rios e mares, e os etíopes ficaram com a sua pele escura. A pedido de Gaia, a deusa da Terra, Zeus, que entretanto testemunhara os desvarios de Faetonte, atingiu-o com um relâmpago. Faetonte, em chamas, caiu do firmamento como uma estrela cadente, desaparecendo no rio Erídano. As Helíades, suas irmãs, choraram a sua morte durante meses nas margens do rio e foram transformadas em choupos. Várias fontes referem que as suas lágrimas caíam sob a forma de pepitas de âmbar no rio Erídano.

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[As irmãs de Faetonte choram a morte do seu irmão nas margens do rio Erídano e são transformadas em choupos. Nesta cena, o túmulo de Faetonte é visível em segundo plano e Climene junta-se às suas filhas no luto. Cycnus, outro parente de Faetonte, pelo seu luto foi transformado num cisne — um dos mitos associados à constelação do Cisne — , mas essa é outra história! Gravura de Robert Willemsz de Baudous. Fonte: Museum Boijmans Van Beuningen.]

A identificação do rio Erídano com um elemento da paisagem natural da região mediterrânica é difícil. As várias fontes que se referem ao mito de Faetonte estão em desacordo relativamente à sua identificação com um rio em concreto. Uma das versões da história associa-o ao rio Pó, no norte da Itália, que desagua no mar Adriático junto a Veneza. Desde tempos pré-históricos existiu uma rota do âmbar proveniente do norte da Europa, mais concretamente da actual Rússia e países do Báltico, que abastecia os povos mediterrânicos.

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[A rota do âmbar do Báltico durante o império romano reconstruída pelo historiador polaco Jerzy Wielowiejski. Fonte: Wikipedia.]

A foz do rio Pó marcava o fim desta rota por terra. Séculos após a génese destes mitos, Plínio refere-se ainda a esta região como sendo o último posto desta rota e habitada por um povo designado por Veneti, conhecido pelo seu comércio de âmbar. A disseminação do âmbar do Báltico pela região mediterrânica foi posta em evidência pela descoberta de numerosos exemplos em contextos arqueológicos, datados desde o século XVI a.C, em sítios como Egipto, Grécia e Síria. Na Grécia o âmbar era muito apreciado e conhecido pelo nome ἤλεκτρον (elektron), devido à electricidade estática que gerava quando friccionado. Esta é a origem da palavra “electricidade”.

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[Vários tipos de âmbar proveniente do Báltico. A origem de uma pepita de âmbar pode ser determinada por análise da mistura de isótopos de vários elementos nela presente. Âmbares com diferentes origens têm proporções características de certos isótopos. Fonte: Wikipedia.]

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[A constelação do Erídano (Eridanus) com os limites actuais fixados pela União Astronómica Internacional. A direcção do Grande Vazio do Erídano está assinalada pelo círculo vermelho. Crédito: IAU e Sky&Telescope, edição pelo autor.]

No firmamento, o grande rio Erídano nasce aos pés do gigante Orionte. A nascente é marcada pela estrela β (beta) da constelação, Cursa, cujo nome em árabe é al kursiyy al Jauzah — “O Escabelo de Jauzah (Orionte)” — , referindo-se à sua posição junto ao pé direito de Orionte. O rio corre então sinuosamente por entre a Baleia, a Fornalha e a Fénix, a Oeste, e a Lebre, o Cinzel e o Relógio, a Este, em direcção ao céu austral. A foz do rio é marcada por Achernar, a estrela α (alfa) da constelação, e a décima mais brilhante do céu. Achernar está demasiado para Sul para ser visível das latitudes de Portugal continental e Ilhas, mas é-o facilmente para os nossos amigos no hemisfério Sul. O seu nome vem do árabe ākhir an-nahr, cujo significado é literalmente “O Fim do Rio”. Trata-se de uma estrela jovem, quente, maciça e muito luminosa. As suas 7 massas solares fazem-na brilhar com uma luminosidade de 3100 sóis, a uma distância de 139 anos-luz.

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[Achernar tem uma forma elipsoidal extrema devido à sua rotação velocíssima. Fonte: Wikipedia.]

Observações realizadas com um sistema sofisticado de óptica adaptativa instalado no Very Large Telescope detectaram uma estrela companheira numa órbita apertada a uma distância de 12 UA (Unidades Astronómicas) e com um período de 14 anos, aproximadamente. Esta estrela misteriosa parece ter características muito semelhantes a Vega, na constelação da Lira. Estudos realizados com um interferómetro demonstraram que a componente principal do sistema tem uma velocidade de rotação tão elevada que assume uma forma elipsoidal — o seu diâmetro equatorial é 56% maior do que o polar! Os seus pólos, mais próximos do centro da estrela, têm uma temperatura superficial de 20000 Kelvin, ao passo que na região equatorial esta desce para “apenas” 10000 Kelvin — quase o dobro da temperatura superficial do Sol.

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[A estrela ε Eridani, à esquerda, comparada com o Sol. A sua fotosfera é mais fria do que a do Sol, 5100 vs. 5800 Kelvin, daí a sua cor alaranjada. Com cerca de 82% da massa do Sol, ε Eridani tem apenas 34% da luminosidade solar. Fonte: Wikipedia.]

Mais para norte, numa das curvas do rio, encontramos a estrela ε (épsilon) da constelação — ε Eridani. Não se trata de uma estrela especialmente brilhante mas isso não lhe retira importância. De facto, ε Eridani situa-se a apenas 10.5 anos-luz e é a décima sexta estrela mais próxima do Sistema Solar. É mais jovem do que o Sol, provavelmente com menos de mil milhões de anos — o Sol tem 4.6 mil milhões — , como de resto o atesta a sua intensa actividade magnética. Apesar de ser ligeiramente menos maciça, menos quente e menos luminosa do que o Sol, é considerada uma estrela de “tipo solar”. A uma distância de 35 a 75 UA (Unidades Astronómicas) de ε Eridani, sensivelmente à mesma distância que a Cintura de Edgeworth-Kuiper no Sistema Solar, existe um disco de partículas de poeira e gelo. Na região mais interior, foram detectadas duas cinturas de asteróides e um planeta, talvez mesmo dois. A estrela é por isso um alvo apetecido para as equipas que tentam descobrir planetas em torno de outras estrelas directamente, através de fotografias com sistemas ópticos sofisticados.

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[A anomalia do Erídano na radiação cósmica de fundo de microondas levou à descoberta do maior vazio intergaláctico conhecido, com mil milhões de anos-luz de diâmetro. Crédito: NASA/WMAP Science Team e Rudnick et al. NRAO/AUI/NSF.]

Para terminar, deixo-vos um mistério. Em 2007, foi detectada uma anomalia na radiação cósmica de fundo em microondas, uma região imensa mais fria do que a média, na direcção da constelação do Erídano. Os catálogos existentes de galáxias activas mostravam também que não havia fontes de rádio nessa região do céu. Estudos subsequentes mostraram que nessa direcção existe uma das maiores estruturas conhecidas no Universo, um enorme vazio intergaláctico com um diâmetro de mil milhões de anos-luz, onde praticamente não existem galáxias ou qualquer tipo de matéria observável. Ninguém sabe ao certo como foi possível formar-se uma tal estrutura.

5 comentários

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    • Edgar Ferreira on 27/11/2014 at 17:54
    • Responder

    Muito obrigado pela rápida resposta e por todas as referências bastante esclarecedoras.

    As fontes que sugerem o vazio de Erídano (a existir) como o maior são de 2007. Existem outras mais recentes (talvez não as mais adequadas) que já colocam o supervazio dos cães de caça (tradução minha) como o maior:

    http://en.wikipedia.org/wiki/Giant_Void

    http://www.quazoo.com/q/Extragalactic%20astronomy

    http://books.google.pt/books?id=rBd4BAAAQBAJ&pg=PT21&lpg=PT21&dq=Canes+Venatici+Supervoid+nasa&source=bl&ots=9UI4Vw3tsh&sig=KcKmjjfW9nIMi4HRO40_H4j9fz4&hl=pt-PT&sa=X&ei=Xk53VPzdBM20ac37gOgN&ved=0CFEQ6AEwBg#v=onepage&q=Canes%20Venatici%20Supervoid%20nasa&f=false
    (Livro do Record do Guiness 2015, página 18)

    Independentemente do que na actualidade conhecemos como sendo o vazio maior, o processo de formação destes vazios é muito intrigante e mais uma vez desafia as teorias da origem do Universo.
    Obrigado também por essa reflexão.

    Abraço,

    Edgar Ferreira

    • Edgar Ferreira on 24/11/2014 at 00:22
    • Responder

    Excelente artigo! Como sempre muito cativante associando informações científicas curiosas de constelações visíveis em Portugal com a sua mitologia e alguns elementos históricos. Gosto muito dos seus artigos porque aprendo imenso com eles.
    Muito curiosa a anomalia de Erídano e como a própria mitologia se parece adequar a esse achado (basta imaginar a queda de Faetonte no grande vazio). No artigo é referido que se trata do maior vazio intergaláctico conhecido, o que me fez procurar saber um pouco mais sobre isso. No entanto na Wikipedia (admito não ser a melhor fonte de informação) o maior vazio intergaláctico encontra-se na constelação dos cães de caça. Será esta última informação válida e actualizada ou existirão dados mais rigorosos que continuam a colocar o vazio de Erídano como o maior conhecido?
    Muito obrigado pelo esclarecimento e pelos excelentes e muito interessantes artigos que aqui tem publicado.

    Saudações astronómicas,

    Edgar Ferreira

    1. Olá Edgar,

      Obrigado pelo seu comentário. Sabe-se muito pouco sobre o Grande Vazio do Erídano. Logo à partida, ainda não é totalmente certo que exista. É uma hipótese, a mais simples, para explicar a anomalia na radiação cósmica de fundo em micro-ondas nessa região do céu. Existem alguns dados que parecem corroborar a sua existência mas tanto quanto pude ler, desde a descoberta em 2007, não apareceram ainda artigos na literatura que demonstrem conclusivamente a realidade deste vazio intergaláctico. A verdade é que fazer um censo de galáxias a essa distância (estimada entre 6 e 10 mil milhões de anos-luz) requer uma grande quantidade de tempo de telescópio em grandes observatórios; é um projecto para muitos anos. O tamanho estimado para este vazio é de cerca de mil milhões de anos-luz, muito maior do que os conhecidos na altura.

      Seguem algumas referências adicionais:

      http://apod.nasa.gov/apod/ap070827.html

      http://www.nrao.edu/pr/2007/coldspot/

      http://www.newscientist.com/article/dn12546-biggest-void-in-space-is-1-billion-light-years-across.html#.VHJ9D5OsXwU

      Entretanto, foi descoberto um vazio possivelmente maior, mais próximo:

      http://www.newscientist.com/article/dn16903-new-cosmic-map-reveals-colossal-structures.html#.VHJ9Z5OsXwU

      O que torna o vazio do Erídano tão especial, se existir, é o facto de já ser tão grande quando o Universo era ainda muito jovem. Isto é difícil de explicar com os modelos cosmológicos actuais.

      Esta ligação mostra uma simulação (a mais completa feita até hoje) da formação dos vazios e enxames de galáxias ao longo da evolução do Universo:

      http://www.mpa-garching.mpg.de/galform/virgo/millennium/

      Espero ter respondido à sua questão 🙂

      Abraço,

      Luís

  1. Olá, Luís Lopes,

    Gosto imensamente de suas Postagens – e sou imensamente apaixonada pela constelação do Rio dos Céus Estrelados, Eridanus.

    Moro em lugar de céus mais escuros e transparentes e me sinto extremamente feliz quando posso divisar toda esta constelação – mesmo porque Achernar sempre pisca para mim, me chamando para juntas estarmos!

    E também me sinto comovida pelo fato de estar olhando, em algum ponto do enroscamento, do enredilhamento do Rio Eridanus de estrelas, o super Void sobre o qual você conclui (mesmo que ainda de forma indefinida) seu texto.

    Os céus do hemisféio sul são uma dádiva preciosa!

    Com um abraço estrelado,
    Janine Milward

    1. Olá Janine,

      Muito obrigado pelo seu comentário. Tive a oportunidade de visitar o hemisfério sul algumas vezes e, de facto, o céu austral é absolutamente espantoso. Tem muita sorte em poder desfrutar dele, especialmente num local com pouca poluição luminosa.

      Abraço,

      Luís

  1. […] mítico rio Erídano, representado na constelação homónima, nasce aos pés do gigante Orionte. A nascente é marcada […]

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