A Estrela Nova de 1604

No início do século XVII, a Europa encontrava-se em plena revolução científica. Figuras como Tycho Brahe, Joahnnes Kepler e Galileu Galilei lideravam esta ruptura com o status quo. As observações feitas por Tycho da “Estrela Nova de 1572″ e do “Grande Cometa de 1577″ deitaram por Terra o dogma da imutabilidade do firmamento e puseram em causa a arquitectura celeste vigente. Foi então que, em 1604, uma outra “estrela nova” apareceu na constelação do Ofíuco, também designada por Serpentário. Tycho Brahe já tinha falecido em 1601, mas o seu colaborador próximo, o famoso Johannes Kepler, teria um papel determinante no estudo deste novo fenómeno.

Johannes KeplerKopie eines verlorengegangenen Originals von 1610
O astrónomo alemão Johannes Kepler (1571–1630).

De acordo com os registos existentes, a estrela foi observada pela primeira vez no crepúsculo do dia 9 de Outubro por Ilario Altobelli, em Verona, e Raffaello Gualterotti, em Florença. No dia seguinte, foi observada por Baldassare Capra, Simon Marius e Camillo Sasso, em Pádua, e por Jan Brunowski, em Praga, que notificou Kepler. Galileo Galilei, em Pádua, só observou a estrela no dia 28 de Outubro. Kepler, que na altura trabalhava na corte do Imperador Rudolfo II, em Praga, observou a estrela pela primeira vez no dia 17 de Outubro.

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O espectáculo observado por Kepler no primeiro dia em que viu a estrela nova de 1604. Crédito: Bob King.

O espectáculo deve ter sido estupendo. Naquele Outubro, no crepúsculo, Marte, Júpiter e Saturno encontravam-se muito próximos — em conjunção — na fronteira das constelações do Sagitário, do Ofíuco e do Escorpião. Um tal evento já teria chamado a atenção do mais casual observador do firmamento. Qual “cereja em cima do bolo”, a estrela nova apareceu junto aos 3 planetas, com um brilho superior a todos eles.

Kepler apercebeu-se da importância do fenómeno, apesar de não poder saber na altura que estava a presenciar a explosão de uma estrela — uma supernova — , e decidiu estudá-lo a fundo, realizando meticulosas medições do brilho e da posição até à sua última observação documentada, em 8 de Outubro de 1605. Este material foi publicado em 1606, em Praga, sob a forma de um livro em latim com o título De Stella Nova in Pede Serpentarii (“Sobre a Nova Estrela no Pé do Serpentário”). Este trabalho meticuloso constituiu desde então a principal referência para o estudo do fenómeno pelos astrónomos de gerações subsequentes. Por esta razão, a supernova de 1604 é conhecida também como a “Supernova de Kepler”, (tal como a supernova de 1572 é designada por “Supernova de Tycho”).

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“De Stella Nova in Pede Serpentarii”, por Johannes Kepler.

No oriente, na China e na Coreia, os astrónomos das cortes respectivas não deixaram passar o evento em claro. Os chineses detectaram a estrela pela primeira vez no dia 10 de Outubro, seguidos poucos dias depois pelos Coreanos. Os registos cuidadosos que mantiveram do seu brilho e da sua posição durante quase 1 ano são uma fonte importantíssima de informação para os astrónomos actuais.

Uma análise contemporânea das observações permitiu reconstruir a curva de luz da estrela, i.e. um gráfico que descreve o seu brilho em função do tempo. Inicialmente mais brilhante do que Saturno e tão brilhante como Marte, a estrela continuou a aumentar de brilho, superando Júpiter em poucos dias. A estrela deixou de ser visível no crespúsculo, a partir de Novembro. Nessa altura tinha ainda um brilho semelhante ao de Júpiter. Quando voltou a reaparecer, na alvorada, em Janeiro de 1605, Kepler registou que o seu brilho era semelhante ao de Antares, a estrela mais brilhante da constelação do Escorpião e uma das mais brilhantes do céu. A partir daí, a estrela continuou gradualmente a perder brilho, até deixar de ser visível a olho nu em Março de 1606, depois de um período total de 18 meses de visibilidade!

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Detalhe de mapa no livro “De Stella Nova in Pede Serpentarii” mostrando a posição da estrela nova.

A curva de luz obtida é típica das supernovas de tipo Ia, que resultam da explosão termonuclear de anãs brancas. As posições da estrela nova registadas nestes trabalhos do século XVII permitiram aos astrónomos da actualidade determinar com precisão a localização da supernova e procurar nessa zona do céu os vestígios da estrela que explodiu — o remanescente da supernova. Não surpreendentemente, os astrónomos encontraram um remanescente de supernova, ainda recente, com poucas centenas de anos, a uma distância de cerca de 20 mil anos-luz. É designado num catálogo para estes objectos por G4.5+6.8.

The remains of a stellar explosion that appear in Earth's sky in 1604.
Imagem do remanescente G4.5+6.8 obtida com o Telescópio Espacial Chandra, em raios X. Crédito: NASA/CXC/NCSU e M. Burkey et al..

O G4.5+6.8 foi estudado intensamente ao longo de décadas e observado em várias zonas do espectro electromagnético para perceber melhor a sua dinâmica e composição. Apesar de apresentar todas as características resultantes de uma supernova de tipo Ia, como tinha sido sugerido pela curva de luz da estrela de 1604, há particularidades interessantes que o tornam algo desviante. Actualmente, crê-se que a maioria das supernovas de tipo Ia têm origem num sistema binário constituído por 2 anãs brancas. A colisão das duas estrelas provoca a ignição da fusão explosiva do carbono que evolui para uma supernova. No entanto, ocasionalmente, algumas supernovas de tipo Ia têm origem num sistema com uma anã branca e uma estrela normal. O material da estrela normal é capturado pela anã branca e acumula-se na sua superfície. Eventualmente, o peso desse material despoleta a fusão do carbono e a consequente supernova. No caso do remanescente G4.5+6.8, existem indícios importantes que apontam para este segundo cenário, mais raro, como sendo o que esteve na origem da supernova.

2 comentários

    • Samuel Junior on 26/11/2014 at 19:43
    • Responder

    Qual seria a distância segura mínima (anos luz) para que a radiação de uma supernova do tipo la não afete a vida na Terra? Pelas duas notícias de hoje, mesmo estando tão longe, o evento foi bastante energético e perceptível para os observadores daqui.

    1. Olá Samuel,

      Pelo que li é difícil obter uma resposta exacta. Parece consensual que uma distância de algumas centenas de anos-luz, e.g. a distância a que se encontra Betelgeuse, será suficientemente segura. Mais próximo e teríamos provavelmente um problema sério devido à grande quantidade de radiação ionizante – raios gama e raios X -, libertada durante a explosão e que poderia ter efeitos catastróficos na atmosfera terrestre.

      Luís

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