Rosetta relança debate sobre a origem dos oceanos terrestres

67P_NavCam_Rosetta_201114Cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko numa imagem obtida pela câmara de navegação da sonda Rosetta, a 20 de novembro de 2014.
Crédito: ESA/Rosetta/NavCam.

Dados obtidos pelo instrumento ROSINA (Rosetta Orbiter Spectrometer for Ion and Neutral Analysis) da sonda Rosetta indicam que a água da cabeleira do cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko é significativamente diferente da água dos oceanos terrestres. A descoberta foi divulgada na semana passada, num artigo publicado na revista Science, e intensifica o debate em torno de uma das mais importantes questões acerca da formação do nosso planeta e da origem da vida na Terra: donde terá vindo a água dos nossos oceanos?

“Sabíamos que a análise in situ deste cometa (…) iria trazer-nos sempre surpresas para o quadro mais geral da ciência do Sistema Solar, e esta excecional observação alimenta, certamente, o debate sobre a origem da água da Terra”, afirmou Matt Taylor, cientista da missão Rosetta.

Há 4,6 mil milhões de anos, a jovem Terra seria demasiado quente para que compostos voláteis como a água pudessem condensar na sua superfície. Neste cenário, os cientistas concordam que a água teria chegado ao nosso planeta a bordo da miríade de asteróides e cometas que bombardearam o Sistema Solar interior, numa fase posterior da evolução dos planetas. Porém, permanece ainda por esclarecer qual terá sido o contributo relativo de cada uma das classes de objetos no fornecimento de água à superfície terrestre.

A chave para a resolução deste enigma encontra-se na razão deutério/hidrogénio (D/H) presente nas moléculas de água dos diferentes objetos. O deutério (D ou 2H) é um dos dois isótopos estáveis do hidrogénio, diferindo apenas do isótopo mais abundante, o prótio ou hidrogénio leve (H ou 1H), pela presença de um neutrão adicional no seu núcleo.

Cintura_Kuiper_Nuvem_Oort_contextoIlustração mostrando os dois principais reservatórios de cometas: a Cintura de Kuiper (30 a 50 UA de distância do Sol) e a Nuvem de Oort (50000 a 100000 UA de distância do Sol).
Crédito: ESA.

A razão D/H é um importante indicador das condições de formação e evolução do Sistema Solar. Modelos teóricos sugerem que, logo após a formação do Sol, reações químicas entre os gases e a superfície dos grãos microscópicos precursores dos primeiros planetesimais induziram uma crescente concentração de deutério nas regiões mais frias e remotas do disco protoplanetário. Tendo em conta este mecanismo, os cientistas têm procurado determinar quais os principais contribuintes para a água do nosso planeta, comparando as razões D/H de diferentes objetos do Sistema Solar com a dos oceanos da Terra.

Os cometas são ferramentas particularmente úteis no estudo das condições presentes nos primórdios da formação do Sistema Solar. Compostos por materiais primitivos do disco protoplanetário, estes objetos encerram em si pistas fundamentais para a composição primordial dos locais onde foram formados.

Devido à dinâmica da evolução do Sistema Solar, este não é, no entanto, um processo simples. Os cometas de longo período formaram-se, inicialmente, na mesma região onde emergiram os planetas Urano e Neptuno. Mais tarde, foram arremessados para a distante Nuvem de Oort, como resultado de interações gravitacionais com os gigantes gasosos.

Da mesma forma, os cometas da família de Júpiter, à qual pertence o cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko, foram, provavelmente, formados na Cintura de Kuiper, uma região situada além da órbita de Neptuno. Desalojados do seu local de origem, estes objetos migraram em direção ao Sistema Solar interior, acabando em órbitas controladas pela influência gravitacional de Júpiter.

D_H_SistemaSolar_Altwegg_et_al_2014Razões D/H em diferentes objetos do Sistema Solar.
Crédito: Altwegg et al., 2014.

Constituídos por uma amálgama de rocha, água e outros compostos voláteis, os cometas são suspeitos óbvios no que diz respeito à origem dos oceanos terrestres. Medições da razão D/H realizadas em diferentes cometas revelaram uma vasta gama de valores. No entanto, dos 11 cometas até agora estudados, apenas o cometa 103P/Hartley 2 apresenta uma razão semelhante à dos oceanos terrestres.

Em contraste, medições realizadas nos meteoritos provenientes de objetos da Cintura de Asteroides mostram uma razão D/H muito semelhante à da água da Terra. Estes intrigantes resultados sugerem que, apesar dos asteroides possuírem uma proporção de água muito inferior à dos cometas, terão sido estes objetos os responsáveis pela maior parte da água dos nossos oceanos.

É neste contexto que os dados obtidos pela Rosetta são importantes. A razão D/H medida pelo instrumento ROSINA no cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko é mais de 3 vezes superior à detetada nos oceanos terrestres e no cometa 103P/Hartley 2, um dos seus companheiros na família de Júpiter. Curiosamente, esta razão é ainda superior ao valor mais elevado alguma vez medido num objeto da Nuvem de Oort!

“Esta surpreendente descoberta poderá indicar origens diversas para os cometas da família de Júpiter – talvez estes objetos se tenham formado numa gama de distâncias (…) muito superior ao que anteriormente pensávamos”, afirmou Kathrin Altwegg, investigadora principal do instrumento ROSINA, e primeira autora do artigo. “A nossa descoberta contraria, também, a ideia de que os cometas da família de Júpiter contêm somente água semelhante à da Terra, e dá mais peso aos modelos que colocam mais ênfase nos asteroides como principal mecanismo de entrega [de água] aos oceanos da Terra.”

Podem ler mais detalhes sobre este trabalho aqui.

17 comentários

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    • Dinis Ribeiro on 18/12/2014 at 22:34
    • Responder

    Dois textos em Português sobre esta possibilidade, que só localizei agora, para ajudar a divulgar e debater esta possibilidade…

    A palavra ~ reservatório ~ parece talvez puco adequada para descrever esta possibilidade…
    http://www.publico.pt/ciencia/noticia/o-maior-reservatorio-de-agua-do-mundo-pode-ter-sido-descoberto-1639814#/12131pag-2

    Talvez seja bastante antropocêntrica, esta ideia de que a água deve ser liquida, parecida com a que vemos diariamente nos rios e no mar…

    Um titulo mais sóbrio, mas talvez demasiado seco neste outro artigo…
    http://www.publico.pt/ciencia/noticia/descoberto-mineral-que-confirma-a-existencia-de-enormes-quantidades-de-agua-no-interior-da-terra-1628075

    • Dinis Ribeiro on 18/12/2014 at 22:15
    • Responder

    Ao pensar sobre estas questões talvez valha a pena não nos esquecermos da Ringwoodite…

    Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Ringwoodite

    Ringwoodite is thought to be the most abundant mineral phase in the lower part of Earth’s transition zone.

    Apart from the mantle, natural ringwoodite has been found in many shocked chondritic meteorites, in which the ringwoodite occurs as fine-grained polycrystalline aggregates.

    In meteorites, ringwoodite occurs in the veinlets of quenched shock-melt cutting the matrix and replacing olivine probably produced during shock metamorphism.

    Sugestões…

    http://news.discovery.com/earth/oceans/oceans-of-water-found-locked-deep-inside-earth-140612.htm

    http://www.newscientist.com/article/dn25723-massive-ocean-discovered-towards-earths-core#.VJNBDXV_vRY

    http://www.theguardian.com/science/2014/jun/13/earth-may-have-underground-ocean-three-times-that-on-surface

    After decades of searching scientists have discovered that a vast reservoir of water, enough to fill the Earth’s oceans three times over, may be trapped hundreds of miles beneath the surface, potentially transforming our understanding of how the planet was formed.

    The water is locked up in a mineral called ringwoodite about 660km (400 miles) beneath the crust of the Earth, researchers say.

    http://www.sciencemag.org/content/344/6189/1265

    Ainda do link da wikipedia sobre a Ringwoodite junto mais um detalhe…

    An ultra-deep diamond found in Juína, Mato Grosso in western Brazil, contained inclusions of ringwoodite—the only known sample of natural terrestrial origin—thus providing evidence of significant amounts of water as hydroxide in the Earth’s mantle.

    The gemstone, about 5mm long,was blasted up from the depths by a diatreme eruption.

    The ringwoodite inclusion is too small to see with the eye.

    The mantle reservoir is found to contain about three times more water, in the form of hydroxide contained within the ringwoodite crystal structure, than the Earth’s oceans combined.

    Ver http://www.scientificamerican.com/article/rare-diamond-confirms-that-earths-mantle-holds-an-oceans-worth-of-water/

    • Samuel Junior on 15/12/2014 at 18:03
    • Responder

    A amostra e análise é importante, porém tem que levar em consideração que a água na superfície do cometa está sujeita a todo tipo de radiação que poderá mudar suas propriedades, ao contrário da água mais “protegida” do cometa que se encontra em 99% da sua massa. Para termos uma análise segura a respeito da importância da contribuição dos cometas na água do planeta seria necessário pegar vários deles e “moer” para separar toda a água do mesmo e aí sim fazer o cálculo, algo impossível para os instrumentos/equipamentos atuais.

    No mais, não existiria a possibilidade de boa parte da água na Terra já ter se formado no seu período de acreção? Afinal para se formar um planeta é necessário reunir todos os elementos disponíveis no ambiente, tais como asteróides, meteoros, cometas, etc.

    Levando em conta esta possibilidade, toda a água da terra neste momento estava na forma de vapor d’água na atmosfera (o que tornaria a atmosfera terrestre naquele momento extremamente úmida e pesada) ou presa entre o magma ou entre as rochas com a formação da crosta terrestre. Isto sem levar em conta que, partindo desta premissa, pode existir uma quantidade colossal, talvez mais água que exista em toda superfície, no seu manto.

    1. Olá Samuel,

      A água da cabeleira do cometa provém de bolsas de gelo recentemente expostas à radiação solar, ou seja, tem origem em materiais inalterados desde a formação do Sistema Solar. 😉

      Quanto à questão da água da Terra se ter formado durante a fase de acreção, tem de ter em conta que, nessa altura, o Sistema Solar interior era demasiado quente para que os compostos voláteis, como a água, pudessem condensar. Toda a água, que hoje encontramos nos planetas interiores, teve de ser transportada por objetos formados em locais mais distantes, onde a temperatura era suficientemente baixa para que os materiais voláteis pudessem permanecer sólidos.

        • Samuel Junior on 16/12/2014 at 14:54

        Interessante questão, qual é a temperatura máxima para que a água possa manter sua configuração H2O sem que suas moléculas sejam separadas em hidrogênio e oxigênio?

      1. Olá Samuel,

        São necessárias temperaturas superiores a 3200º C para obter uma dissociação da água superior a 50% (se considerarmos uma pressão atmosférica de 1 atm). No entanto, há 4,6 mil milhões de anos, apenas a parte central do disco protoplanetário atingiria tais temperaturas. 😉

        • Samuel Junior on 17/12/2014 at 15:36

        Sérgio parte central que vc diz é o atual sistema solar ou só a área que abrange os arredores do sol talvez até a distância de Marte?

      2. Samuel,

        Refiro-me à região ocupada pelo protossol. Na região correspondente ao Sistema Solar interior, as temperaturas seriam consideravelmente mais baixas. De acordo com os modelos teóricos, atingiriam valores abaixo dos 300 a 400º C, na região onde hoje se encontram os quatro planetas telúricos Mercúrio, Vénus, Terra e Marte.

        • Samuel Junior on 19/12/2014 at 15:35

        Obrigado pela informação Sérgio. Se a temperatura da Terra não era suficientemente quente na superfície para dissociar a água a hipótese que eu propus continua a fazer sentido, que boa parte da água na terra já estava presente durante a sua formação presa entre as rochas/magma em forma de vapor e em gigantescas quantidades na atmosfera em forma de vapor. De acordo com o que eu já li e documentários sobre a formação da Terra que eu já vi, a Terra era muito quente no começo, mas se a hipótese que eu coloquei for verdadeira, é bem possível que a chuva era algo muito constante naquela época, devida a quantidade gigantesca de água que se encontrava na atmosfera na forma de vapor. Este constante ciclo, ao longo de milhões de anos, deve ter contribuído bastante para a diminuição de água no planeta até as primeiras formações rochosas surgirem e se manterem, até o ponto onde a água poderia ficar condensada sobre as placas na forma líquida.

        Daí asteróides/cometas que se chocaram com o planeta durante este processo ou depois contribuíram para o aumento da quantidade de água no planeta.

      3. Samuel,

        Na fase de acreção, não existiam ainda planetas. Como já lhe tinha dito em cima, nessa altura, a região onde hoje se encontra a Terra, era demasiado quente para que compostos voláteis como a água pudessem condensar. Tudo o que restaria seria uma miríade de pequenos corpos em crescimento, formados por silicatos e metais – materiais refratários a partir dos quais emergiram a Terra e os outros três planetas telúricos. A água e outros compostos voláteis teriam de ser transportados numa fase posterior, por objetos formados em locais mais distantes, onde a temperatura era suficientemente baixa para que estes materiais pudessem condensar.

  1. Sorry, typo…
    Queria dizer biliões :-)))
    Lá estava eu a pensar no Euromilhões…

  2. Olá Sérgio, obrigado pelo post.
    Referiste que a terra primitiva seria muito quente para alojar água. No caso de um impacto com um corpo celeste(maioritariamente água) do tamanho superior ao de Marte que migrou para o interior do sistema solar á 4.5 milhões de anos desceria a temperatura do planeta terra para este a reter, ou os modelos teóricos eliminam esta hipótese?
    Abraço e boa semana

    1. Olá Bruno,

      A energia libertada por um impacto dessa natureza (i. e., produzido por um objeto com um tamanho superior a Marte, constituído maioritariamente por água e com uma velocidade relativamente elevada) seria suficiente para derreter todo o planeta. 😉

        • Bruno Alves on 22/12/2014 at 09:02

        Bom dia, sim seria muita energia…mas talvez com o impacto nem todo o H2O se dissociasse. Que evidência e’ que temos que mostram que a origem da lua se deveu a uma colisão com um corpo rochoso e não com um planeta líquido com água?

      1. Olá Bruno,

        Recentemente, cientistas alemães compararam a composição isotópica do oxigénio de rochas lunares com a de rochas do manto terrestre. O que descobriram foi que os dois tipos de rocha têm proporções significativamente diferentes dos três isótopos 16O, 17O e 18O, o que suporta a hipótese de que a Lua foi formada por uma colisão catastrófica entre a Terra e um planetesimal de grandes dimensões (informalmente designado Theia). Curiosamente, estas proporções são quase idênticas quando comparadas com as de meteoritos provenientes de Marte, o que, de acordo com os autores do trabalho, poderá sugerir que Theia e a Terra se formaram na mesma região do Sistema Solar. Ou seja, Theia seria muito provavelmente um corpo constituído por rocha e metais. 😉

        • Bruno Alves on 22/12/2014 at 23:19

        Obrigado Sérgio, interessante artigo científico. Achei apenas paradoxal como é que o estudo sugere que Thea teve um impacto oblíquo com a terra, supondo que estes formados relativamente perto deveriam estar no mesmo plano de translação… 😉 embora não seja exatamente um plano, certo? eu estava a pensar num “Thea” gelado que tinha vindo da zona de Júpiter, trazendo a nossa água… 🙂 abraço

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