Das Novas até à Pilha do Telemóvel

O lítio — terceiro elemento da tabela periódica, logo a seguir ao hidrogénio e ao hélio — tem uma enorme importância no nosso quotidiano, estando na base da tecnologia das pilhas alcalinas de grande densidade energética que são utilizadas em todo o tipo de equipamentos, desde computadores a telemóveis, carros eléctricos, etc. Um facto intrigante acerca do lítio é que a sua abundância relativa no Universo não bate certo com as previsões teóricas. Apesar de já terem decorrido várias décadas desde a constatação deste facto, os astrofísicos tentam ainda perceber o ciclo do lítio no Universo — onde e em que circunstâncias é produzido e destruído — , para tentarem conciliar a teoria com as observações. Um artigo publicado na edição de hoje (19 de Fevereiro) da revista Nature, por uma equipa de astrónomos japoneses, apresenta as primeiras observações directas da produção de lítio-7 numa nova, um avanço importante para o esclarecimento desta questão.

A nucleossíntese primordial, durante os primeiros segundos após o Big-Bang, produziu algum lítio, para além de grandes quantidades de hidrogénio e hélio. Nessa altura, a fusão nuclear parou por aí, pois as temperaturas baixaram rapidamente. O lítio existe sob a forma de dois isótopos estáveis, o lítio-6 (com 3 protões e 3 neutrões) e o lítio-7 (com 3 protões e 4 neutrões), sendo o segundo o mais comum.

Bateria de iões de lítio no interior de um telemóvel. Crédito: Bloomberg via Getty Images.

Bateria de iões de lítio no interior de um telemóvel. Crédito: Bloomberg via Getty Images.

Como disse no preâmbulo deste texto, o lítio é um elemento problemático para os astrofísicos. Ao contrário da maioria dos restantes elementos químicos, para os quais a nucleossíntese primordial e a que ocorreu nas gerações de estrelas subsequentes permitem calcular abundâncias consistentes com as observadas, existe uma clara discrepância entre as abundâncias de lítio calculadas e observadas. Nos anos 80, dois astrónomos do Observatório de Paris — Monique e François Spite — demonstraram que a abundância de lítio-7 nas estrelas mais antigas da Via Láctea, e portanto formadas com material com uma composição quase primordial, é de apenas um terço da indicada pela teoria. Para tentar perceber esta discrepância, os cientistas tentam identificar os vários processos astrofísicos capazes de produzir e destruir o elemento. Sabe-se, por exemplo, que o lítio é destruído rapidamente no interior das estrelas — a temperatura crítica para a fusão do lítio (em hélio) é ligeiramente inferior à necessária para o início da fusão do hidrogénio em hélio. Portanto, as estrelas em geral contribuem para a destruição do elemento. Por outro lado, várias linhas de investigação identificaram as estrelas de pequena massa numa fase avançada da sua evolução e as explosões em sistemas binários, designadas por novae, como os candidatos mais prometedores para fontes do elemento. No entanto, até hoje, não havia observações directas que corroborassem estas suspeitas.

Os vários mecanismos capazes de produzir lítio no Universo. As setas vermelhas com pontos de interrogação traduzem a inexistência de observações que demonstrem a sua contribuição real para a produção de lítio. O trabalho aqui descrito transforma a seta vermelha das novae numa seta azul. Crédito: NAOJ.

Os vários mecanismos capazes de produzir lítio no Universo. As setas vermelhas com pontos de interrogação traduzem a inexistência de observações que demonstrem a sua contribuição real para a produção de lítio. O trabalho aqui descrito transforma a seta vermelha das novae numa seta azul. Crédito: NAOJ.

As novae resultam da explosão provocada pela fusão descontrolada do hidrogénio na superfície de uma anã branca. O hidrogénio acumula-se na superfície da anã branca pois esta faz parte de um sistema binário com uma estrela normal cuja dimensão excede o tamanho do seu lóbulo de Roche. O lóbulo de Roche é uma superfície imaginária que define a região do espaço dominada gravitacionalmente por uma estrela relativamente a uma companheira. Parte do material que escapa do lóbulo de Roche da estrela normal cai num disco de acreção que rodeia a anã branca e acumula-se ao longo de milhares de anos na sua superfície.

Uma anã branca captura plasma rico em hidrogénio de uma companheira cujo tamanho excede o seu lóbulo de Roche.

Uma anã branca captura plasma rico em hidrogénio de uma companheira cujo tamanho excede o seu lóbulo de Roche.

Tipicamente estes sistemas situam-se a vários milhares de anos-luz pelo que, num estado quiescente, são pouco brilhantes e visíveis apenas com telescópios de grande dimensão. Devido à intensa gravidade superficial da anã branca, o hidrogénio é comprimido e aquecido até atingir cerca de 20 milhões de Kelvin, altura em que se inicia a fusão deste elemento. A reacção é descontrolada e em poucos segundos todo o hidrogénio depositado na superfície da anã branca, parcialmente processado em novos elementos, é atirado para o espaço com velocidades que atingem vários milhares de quilómetros por segundo. A energia libertada na explosão aumenta temporariamente a luminosidade do sistema por um factor de 50 a 100 mil vezes. A anã branca permanece intacta e o processo de acreção de material a partir da companheira recomeça de novo.

Uma nova é uma explosão nuclear na superfície de uma anã branca. A explosão deve-se à fusão explosiva do hidrogénio aí acumulado ao longo de milhares de anos e proveniente de uma estrela companheira. Crédito: NAOJ.

Uma nova é uma explosão nuclear na superfície de uma anã branca. A explosão deve-se à fusão explosiva do hidrogénio aí acumulado ao longo de milhares de anos e proveniente de uma estrela companheira. Crédito: NAOJ.

Para um observador casual do céu, sem acesso a instrumentos ópticos, as novae aparecem de forma imprevisível num local onde, aparentemente, não existia nenhuma estrela. Esta era a percepção dos nossos antepassados, sem o benefício do conhecimento científico actual, e daí o termo nova, que tem origem no Latim. No entanto, o fenómeno não é permanente. Ao fim de algumas semanas ou meses o brilho do sistema diminui drasticamente e, para o observador, a estrela desaparece de novo no anonimato. Todos os anos são descobertas várias novae na nossa galáxia, a Via Láctea. Nem todas são suficientemente luminosas para serem observadas a olho nu, já que o gás e as poeiras existentes no espaço interestelar são muito eficientes na absorção da luz proveniente da explosão. Uma nova visível a olho nu é, por isso, um fenómeno mais raro. Um exemplo recente, foi a Nova Delphini 2013, que apareceu em Agosto de 2013 na constelação do Golfinho.

A Nova Delphini 2013. Crédito: Bob King.

A Nova Delphini 2013. Crédito: Bob King.

Foi precisamente esta nova que foi estudada pela equipa japonesa. Os cientistas analisaram a luz, mais propriamente o espectro, do sistema, 50 dias após a explosão. Nele detectaram linhas espectrais provenientes de átomos de um isótopo instável do berílio (o quarto elemento mais leve da tabela periódica) — o berílio-7. Este isótopo forma-se na superfície da anã branca pela fusão de núcleos de hélio-3 e hélio-4. As linhas espectrais estavam deslocadas para o azul, correspondendo a velocidades de 1268 e 1103 km por segundo, indicando que os átomos de berílio-7 se encontravam em nuvens de plasma ejectadas pela explosão que se moviam na direcção da Terra.

Cinquenta dias após a explosão, o espectro da nova apresenta linhas devidas a átomos de berílio-7 presentes em nuvens de plasma ejectadas pela explosão. Crédito: NAOJ.

Cinquenta dias após a explosão, o espectro da nova apresenta linhas devidas a átomos de berílio-7 presentes em nuvens de plasma ejectadas pela explosão. Crédito: NAOJ.

A “cereja em cima do bolo” é o facto do berílio-7 ser um isótopo radioactivo que decai gradualmente (com uma vida média de 53.2 dias) em lítio-7, um dos isótopos estáveis do lítio. Este lítio seria destruído rapidamente num ambiente com a temperatura inicial da explosão da nova, no entanto, a expansão das nuvens de plasma baixa a temperatura permitindo a sobrevivência dos átomos recém formados. Dito de outra forma, quase todo o berílio detectado no espectro da nova e formado na explosão irá transformar-se em lítio — a primeira observação directa da produção de lítio numa nova.

O berílio-7 forma-se nas reacções nucleares que ocorrem junto à superfície da anã branca durante uma nova. Este isótopo decai depois rapidamente em lítio-7, um isótopo estável de lítio e o mais abundante no Universo. Crédito: NAOJ.

O berílio-7 forma-se nas reacções nucleares que ocorrem junto à superfície da anã branca durante uma nova. Este isótopo decai depois rapidamente em lítio-7, um isótopo estável de lítio e o mais abundante no Universo. Crédito: NAOJ.

Este resultado demonstra de forma particularmente robusta que as novae constituem fontes de lítio. Como as novae são eventos frequentes na nossa galáxia, a sua contribuição absoluta para a abundância do lítio é certamente muito significativa.

(Fonte: NAOJ/Subaru)

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  1. […] dia 21 de Fevereiro de 1901 o escocês Thomas David Anderson descobriu uma “estrela nova” na constelação de Perseu. A Nova Persei 1901 (também conhecida posteriormente por GK Persei) foi […]

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