Paradoxos da Razão – Parte IV

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Um paradoxo é uma contradição, é como que uma falha lógica. Assim, como é que o pensamento racional poderá conduzir a paradoxos? A questão em si parece ser paradoxal, a menos que a razão nos pregue partidas.

Na parte I falei-vos dos paradoxos de Zeno, do paradoxo da roda de Aristóteles, e do problema da corda à volta da Terra. Na parte II abordei o Paradoxo de São Petersburgo, o Princípio da Casa de Pombos, e a Fita de Möbius. Na parte III debrucei-me sobre o Paradoxo do Barbeiro, o Teorema do Macaco Infinito, o Paradoxo de Banach-Tarski, e o Paradoxo do Grande Hotel de Hilbert.

Nesta quarta parte vou expor os Teoremas de Gödel, o Paradoxo do Aniversário, e o Paradoxo da linha de costa.

Teoremas de Gödel

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São na verdade dois teoremas, também conhecidos por Teoremas da Incompletude. São do meu ponto de vista dos teoremas mais interessantes da Matemática, exactamente por determinarem limites à própria Matemática, e de certo modo ao pensamento e à ciência em geral.

Durante séculos, inúmeros matemáticos tentaram estabelecer de forma rigorosa e inequívoca os axiomas necessários para construir sobre eles toda a Matemática. Hilbert, no começo do século XX, formulou o conhecido “Programa de Hilbert” que propunha solucionar e clarificar as fundações de toda a Matemática. O objectivo era “reduzir” todas as teorias matemáticas a uma lista bem definida de axiomas que pudessem ser provados em sistemas mais simples (em última instância, tudo se reduziria a simples aritmética).

Os Teoremas de Gödel vieram explicar o porquê de até aí ninguém ter conseguido achar a solução para o Programa de Hilbert: tratava-se de uma missão impossível. Os Teoremas da Incompletude assertam que a Matemática é essencialmente e necessariamente incompleta. É sempre possível definir questões ou preposições dentro de um dado “sistema matemático” que não podem ser testadas em função dos axiomas que definem o sistema. Mais que isso, um “sistema matemático” não pode provar a sua própria consistência matemática, o que implica que também não possa ser usado para provar a consistência de outros. (É escusado referir que, infelizmente, não existe uma demonstração matemática do teorema que seja acessível ao comum dos mortais.)

O teorema em si não tem nada de paradoxal na sua essência, contudo, tal como outras noções que discuti nas outras partes deste artigo, delimita como que uma fronteira no nosso entendimento lógico do mundo das ideias. É importante referir, porém, que estes teoremas não se aplicam a todos os campos da Matemática: é possível provar a consistência de vários ramos (o próprio Gödel, por exemplo, antes de provar estes teoremas, provou a “completude” de sistemas de lógica de primeira ordem). (Peço desculpa por introduzir tantos termos técnicos que o leitor provavelmente desconhece: deixo-os apenas como um ponto de partida para que possa pesquisar um pouco mais sobre estes temas, caso tenha interesse.)

Para concretizar um pouco, nos seus teoremas Gödel escreveu em linguagem matemática a frase: “esta asserção não pode ser provada”, e demonstrou que de facto esta e outras asserções não podem ser provadas como verdadeiras.

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Kurt Gödel (1906-1978) é reconhecido como um dos grandes matemáticos do século XX. Foi um amigo íntimo de Albert Einstein.

Paradoxo do Aniversário

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Para que o leitor não desanime com o teorema anterior, recordo que a Matemática continua a ter um inquestionável poder para caracterizar e quantificar o observável. O paradoxo do aniversário ilustra isto mesmo.

Quantas pessoas são necessárias reunir (ao acaso) para que a probabilidade de pelo menos duas delas fazerem anos no mesmo dia seja de 50%?

Ora, o ano tem 365 dias (esqueçamos os bissextos, em boa aproximação, para simplificar)… A probabilidade de uma pessoa fazer anos num dado dia é de 1/365 (ver o artigo sobre a Probabilidade de ganhar o € Milhões para recordar como se calculam probabilidades). Pelo Princípio da Casa de Pombos (ver parte II deste artigo) sabemos que basta reunir um número de pessoas superior ao número de dias que o ano tem para que se garanta que pelo menos duas delas façam anos no mesmo dia: ou seja, se juntarmos 366 pessoas, garantimos que duas fazem anos no mesmo dia, pelo menos (ou 367, se quisermos incluir o 29 de Fevereiro). Assim, a resposta que pretendemos é de certo um número de pessoas inferior a 366. Ao calhas, poderemos ser levados a supor que podemos simplesmente multiplicar os 50% pelos 366: 0.5×366=183. Precisaremos de reunir 183 pessoas aleatoriamente para que a probabilidade de duas delas fazerem anos no mesmo dia seja de 50%? Qual a sua estimativa?

A resposta para esta questão é 23 pessoas! Muito inferior à sua estimativa? Costuma ser, daí chamar-se a este exercício simples de probabilidades de paradoxo, quando na verdade é apenas contra-intuitivo.

Como é que chegamos às 23 pessoas? Caso o leitor queira compreender a explicação sumária que se segue, será importante que tenha lido e percebido a explicação que dei no artigo sobre a Probabilidade de ganhar o € Milhões. Caso não tenha interesse, passe à frente*.

A probabilidade (p1) de pelo menos duas pessoas entre N fazerem anos no mesmo dia é a probabilidade complementar de nenhuma das N pessoas fazer anos no mesmo dia (p2). Ou seja, p1=1-p2. (Assim, p1+p2=1, o que significa que somando os casos favoráveis de p1 aos casos favoráveis de p2 temos todos os casos possíveis, pelo que a soma das probabilidades dá um acontecimento certo, ou seja, de probabilidade igual à unidade. É o que sucede neste caso, em que ou se tem pelo menos duas pessoas a fazerem anos no mesmo dia, ou então fazem todas em dias diferentes – não há mais “opções”.)

Calculemos então a probabilidade p2 de as N pessoas fazerem todas anos em dias diferentes. Se N=2, ou seja, se fossem duas pessoas, teríamos:

Que significa que uma das pessoas (A) faz anos num dado dia, sem restrições ($latex p_a=1$), enquanto que a outra (B) não pode fazer no mesmo dia que A, pelo que ao 1 tem-se que retirar a probabilidade de fazer anos num determinado dia ($latex p_b=1-\frac{1}{365}$). (Recordo que a multiplicação pode ser simbolizada por um ponto, como uso em cima.)

Se fossem três pessoas, a terceira pessoa (C) já não poderia fazer anos em dois dias, pelo que teríamos:

Generalizando para N pessoas:

Introduzo agora a noção de factorial que é simbolizada por um ponto de exclamação ‘!’, em que o factorial de um número inteiro é igual à multiplicação dele por todos os números inteiros inferiores a ele, desde 1. Por exemplo, o factorial de 4 é 24, porque 4! = 4x3x2x1=24. O resultado de cima pode então ser reescrito de forma mais compacta (desafio o leitor a fazer esta demonstração muito simples):

Finalmente, basta resolver p1=1-p2=0.5, e encontra-se o valor de N. Pode-se resolver graficamente:

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No eixo horizontal tem-se o número N de pessoas, e no eixo vertical tem-se a probabilidade p1 de ter duas pessoas com o aniversário no mesmo dia. Naturalmente, para N=1, p2=1, e consequentemente p1=0: se tivermos apenas uma pessoa, não podemos ter duas pessoas a fazer anos no mesmo dia. À medida que N aumenta, também aumenta a probabilidade p1, como é evidente. Quando N chega a 23, a probabilidade já é de 50%, e quando se reúnem 57 ou mais pessoas (N>57), a probabilidade já é superior a 99%.

*Portanto, 23 pessoas são suficientes. O número é relativamente reduzido porque não estamos a especificar nenhuma data ou pessoa em particular. Temos que procurar qualquer par de pessoas possível. Note-se que reunindo 23 pessoas podemos definir 253 pares diferentes de pessoas, e qualquer um deles poderia fazer anos no mesmo dia.

Este problema foi proposto em 1939 pelo matemático americano (nascido na Áustria) Richard von Mises (1883-1953), e desde então tornou-se num problema clássico a ser tratado em aulas de matemática. Este “paradoxo” ilustra bem o facto de que o nosso senso comum se pode enganar facilmente no que toca à probabilidade ou improbabilidade de certos acontecimentos. É sempre conveniente questionarmos o nosso senso comum probabilístico.

(Para quem aprendeu análise combinatória: é fácil chegar aos supramencionados 253: é uma combinação sem repetição de n=23 elementos em subconjuntos de s=2 elementos, ou seja:

Talvez num artigo futuro venha a abordar análise combinatória em maior detalhe.)

Paradoxo da linha de costa

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Lewis Fry Richardson (1881-1953) descobriu que o número de guerras em que um país esteve envolvido é aproximadamente proporcional ao número de países com que faz fronteira. Nestes estudos deparou-se com a questão de como medir o comprimento da linha de costa. Se usarmos uma régua grande como na imagem da esquerda de cima obtemos um dado valor, se diminuirmos o tamanho da régua obtemos outro valor (maior que o anterior, claro). Em princípio, à medida que se diminui o tamanho da régua, o comprimento do contorno da costa aumenta e tende para infinito! Este é naturalmente o paradoxo em causa, porque intuitivamente diremos que o comprimento tem que ser necessariamente finito, pelo que esta aparente divergência não fará sentido.

Benoît Mandelbrot (1924-2010) resolveu o problema introduzindo a noção de dimensão fractal (D). (Recordo que já falei de fractais nos seguintes artigos: Teoria do Caos e A Mitologia e a Verdade da Razão de Ouro.) Até Mandelbrot a dimensão de um espaço era sempre um número inteiro: um ponto tem zero dimensões, uma linha tem uma dimensão (comprimento), uma superfície tem duas dimensões (comprimento e largura), e um sólido tem três dimensões (comprimento, largura e espessura; também se podem definir figuras geométricas em dimensões superiores a três, como é o caso do hipercubo de quatro dimensões, ou tesserato). A dimensão fractal é em geral um número fraccionário, ou se quisermos “fracturada” (daí o nome fractal). No caso da linha de costa da Grã-Bretanha, Mandelbrot descobriu que D=1.26 (aproximadamente). Trata-se de um número entre 1 (linha) e 2 (superfície), porque trata-se de uma linha que preenche parcialmente uma superfície (D=2).

Formalmente, define-se que o número de “réguas” N é inversamente proporcional ao comprimento das “réguas” C para uma linha “suave”:

Enquanto que no caso de uma linha “fracturada” como a linha de costa, segundo Mandelbrot:

Usando esta fórmula é então possível avaliar a dimensão fractal D de uma linha “fracturada”.

É claro que isto é uma construção matemática que não pode ser verificada experimentalmente, pois não se podem construir réguas infinitamente pequenas. Não obstante, este “paradoxo” mostra que existem características que podemos encontrar no mundo real (como a linha de costa) que apresentam esta dimensão fractal ao longo de um dado intervalo de escalas mensuráveis.

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O próximo artigo será a quinta e última parte desta série de artigos sobre paradoxos e ideias contra-intuitivas que encontramos na Matemática.

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“A próxima frase é verdadeira… A frase anterior é falsa…”

 

2 pings

  1. […] Já em finais do século XIX surge um novo género: os números transfinitos. Estes números foram introduzidos por Georg Cantor para denotar o tamanho relativo de conjuntos infinitos. Como referi na primeira parte, Cantor demonstrou que a maioria dos reais eram transcendentais. Além disso, provou muitos outros resultados contraintuitivos: por exemplo, o tamanho relativo do conjunto dos números inteiros é igual ao tamanho relativo do conjunto dos números pares. Parece tratar-se de um absurdo, visto que os pares são um subconjunto dos inteiros. Como pode um subconjunto ter o mesmo “tamanho” que o conjunto do qual faz parte? Pode porque ambos são infinitos (a nossa definição comum de “tamanho” não funciona neste caso). Para conjuntos infinitos a lógica que se deve usar, segundo Cantor, é uma correspondência de um para um. Se para cada número inteiro conseguimos encontrar um número par respectivo (basta multiplicar esse inteiro por 2), então os conjuntos têm o mesmo tamanho relativo. (É a mesma lógica que afirmar que existem tantas pessoas quanto cérebros humanos no mundo, assumindo que cada pessoa tem um cérebro, sem termos que verificar uma a uma.) Cantor demonstrou ainda que a mesma “associação” pode ser feita entre os racionais e os inteiros (ainda que, como disse na primeira parte, existam infinitos racionais entre quaisquer dois inteiros)! A “correspondência” entre racionais e reais já não é possível, havendo na verdade muitos mais reais que racionais (por causa dos transcendentais). Portanto, há infinitos de “tamanhos” diferentes! Na verdade, Cantor mostrou ainda que há infinitos conjuntos de “tamanhos” diferentes! Porém, o que Cantor não conseguiu mostrar é se existe um (ou mais) conjunto infinito maior que o dos inteiros, mas menor que o dos reais. Acreditava que não existe, mas não o conseguiu provar. A sua conjectura ficou conhecida como a hipótese do continuum (que passou mais tarde a integrar a lista de problemas escolhidos por Hilbert, constituindo um dos problemas fundamentais em Matemática). Em 1938, Kurt Gödel demonstrou que esta hipótese não poderia ser provada como falsa; e para surpresa de todos, em 1963, Paul Cohen provou que também não se poderia demonstrar a veracidade da hipótese. Por outras palavras, provou-se que é impossível demonstrar que Cantor estava certo ou errado! Este é um resultado extremamente importante na Matemática moderna, pois mostra que existem questões que não podem ser respondidas! A Matemática demonstrou a sua própria limitação, o que consequentemente significa que a nossa lógica tem um poder finito. (Ver também os Teoremas de Gödel no artigo Paradoxos da Razão.) […]

  2. […] do Macaco Infinito, o Paradoxo de Banach-Tarski, e o Paradoxo do Grande Hotel de Hilbert. Na parte IV expus os Teoremas de Gödel, o Paradoxo do Aniversário, e o Paradoxo da linha de […]

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