Confirmada a Última Grande Previsão da Teoria do Big-Bang

A Teoria do Big-Bang, a mais bem sucedida que temos para descrever o Universo actual e a sua evolução, diz-nos que o Universo evoluiu, expandindo-se, a partir de um estado inicial muito denso e quente. A partir do momento em que a expansão se inicia, a temperatura decai rapidamente. Nos primeiros segundos, partículas exóticas, ainda hoje desconhecidas, decaem nas partículas que conhecemos como os constituintes da matéria e da luz. A temperatura continua a descer e, ao fim de 3 minutos, dá-se a fusão do hidrogénio em hélio e vestígios de lítio, berílio e boro. Esta nucleossíntese inicial depressa termina face à descida rápida da temperatura e à inexorável expansão. Trezentos e oitenta mil anos volvidos, o Universo atinge um raio de 40 milhões de anos-luz e arrefece o suficiente para os electrões livres se combinarem com os núcleos atómicos, formando átomos neutros. Nesse instante, o Universo torna-se transparente e a radiação que hoje vemos como a Radiação Cósmica de Fundo de Microondas (Cosmic Microwave Background, CMB) é emitida. Segue-se um longo período de trevas até à formação das primeiras estrelas e das primeiras proto-galáxias. Hoje, passados 13.8 mil milhões de anos, o Universo continua a sua expansão, acelerada por uma misteriosa energia negra que permeia todo o espaço, com um reticulado de super-enxames de galáxias e de matéria negra como relíquia desse evento primordial extraordinário.

A Radiação Cósmica de Fundo de Microondas (CMB) observada pelo observatório Planck. As cores diferentes refletem minúsculas variações na temperatura. A análise estatística destas flutuações e as escalas angulares em que ocorrem permite deduzir muita informação sobre o estado primordial do Universo. Crédito: Planck/ESA.

A Radiação Cósmica de Fundo de Microondas (CMB) observada pelo observatório Planck. As cores diferentes refletem minúsculas variações na temperatura. A análise estatística destas flutuações e das escalas angulares em que ocorrem permite deduzir muita informação sobre o estado primordial do Universo. Crédito: Planck/ESA.

Ora, segundo esta teoria, nos primeiros segundos deveria ter-se formado uma quantidade inimaginável de neutrinos, a segunda partícula mais abundante no Universo [depois dos fotões, as partículas de luz]. A detecção directa destes neutrinos — o chamado Fundo Cósmico de Neutrinos (Cosmic Neutrino Background, CνB) — é muito difícil, pois a sua energia foi extremamente diluída pela expansão do Universo.

Com a expansão do Universo a matéria fica mais dispersa e os fotões perdem energia. De forma semelhante, a energia dos neutrinos primordiais diminui enormemente. Crédito: Ethan Siegel.

Com a expansão do Universo a matéria fica mais dispersa e os fotões perdem energia. De forma semelhante, a energia dos neutrinos primordiais diminui enormemente. Crédito: Ethan Siegel.

Os neutrinos que deram origem ao CνB formaram-se quando o Universo tinha apenas 2 segundos e uma temperatura de 30 mil milhões de kelvin! Os cálculos indicam que, devido à expansão, a temperatura (uma medida da sua energia média) actual destes neutrinos é de apenas 1.95 kelvin. [Um fenómeno semelhante diluiu a energia da radiação libertada 380 mil anos mais tarde, quando a temperatura era de 3000 kelvin, e que deu origem ao CMB hoje observado com uma temperatura de 2.73 kelvin.] Esta temperatura de pouco menos de 2 graus acima do zero absoluto corresponde a neutrinos com energias médias na ordem dos 100 μeV (100 milionésimos de electrão-volt). Para terem a noção da dificuldade em detectar neutrinos tão pouco energéticos, basta referir que os neutrinos de mais baixa energia detectados até hoje têm energias na ordem dos MeV (milhões de electrões-volt).

A baixa energia dos neutrinos do CvB (Cosmological v) torna quase impossível a sua detecção com a tecnologia actual. Este fluxo de neutrinos, no entanto, deixa marcas detectáveis no CMB. Crédito: IceCube collaboration/NSF/ University of Wisconsin.

A baixa energia dos neutrinos do CvB (Cosmological v) torna quase impossível a sua detecção com a tecnologia actual. Este fluxo de neutrinos, no entanto, deixa marcas detectáveis no CMB. Crédito: IceCube collaboration/NSF/University of Wisconsin.

A situação parece desesperada para os cientistas que tentam confirmar esta previsão da teoria, mas tantas partículas não podem desaparecer sem deixar rasto! De facto, uma análise mais cuidada da teoria mostra que os neutrinos, apesar de interagirem pouco com a matéria em condições normais, seriam muito mais sociáveis nos primeiros momentos do Universo, devido à enorme densidade e temperatura vigentes. Esta socialização com outras partículas, e.g., protões e electrões, deveria deixar marcas nas flutuações quânticas que mais tarde deram origem às variações de temperatura no CMB. Uma análise cuidada das flutuações visíveis no CMB permitiria portanto, teoricamente, detectar este efeito e estabelecer indirectamente a existência do CνB.

As partículas do Modelo Standard. A matéria normal é formada por quarks e leptões. Entre os leptões encontramos os neutrinos, para os quais são conhecidas experimentalmente 3 variedades. Crédito: Quantum Diaries.

As partículas do Modelo Standard. A matéria normal é formada por quarks e leptões. Entre os leptões encontramos os neutrinos, para os quais são conhecidas experimentalmente 3 variedades. Crédito: Quantum Diaries.

Os físicos de partículas estabeleceram experimentalmente a existência de 3 tipos de neutrinos: o neutrino-electrão, o neutrino-muão e o neutrino-tau. [Ninguém sabe se são apenas 3 ou se há mais, mas vejam mais abaixo!] Mais, os neutrinos sabem um truque giro: eles transformam-se uns nos outros enquanto se movimentam no espaço. Isto não é apenas um devaneio dos físicos teóricos, foi verificado experimentalmente! [A observação deste efeito esteve na base da resolução dos aparentes conflitos entre os cálculos teóricos do número de neutrinos que deveria ser emitido pelas reacções nucleares no interior do Sol, e os neutrinos efectivamente detectados na Terra provenientes do Sol.]

O truque fabuloso dos neutrinos que lhes permite mudar de identidade. Crédito: Kamioka Observatory, ICRR, University of Tokyo.

O truque fabuloso dos neutrinos que lhes permite mudar de identidade. Crédito: Kamioka Observatory, ICRR, University of Tokyo.

Curiosamente, a Teoria do Big-Bang diz-nos que as perturbações nas flutuações do CMB provocadas pelos neutrinos primordiais dependem fortemente do número total de variedades de neutrinos existentes no Universo, bem como da temperatura em que estes foram criados. Ora, uma equipa de cientistas acaba de publicar um artigo na prestigiada revista Physical Review Letters, em que explora esta ligação e explica como detectou, pela primeira vez, a impressão deixada por estes neutrinos no CMB. A equipa usou para o efeito dados de domínio público obtidos pelo observatório Planck da ESA. A análise agora publicada demonstra que no Universo existem exactamente 3 variedades de neutrinos, as três conhecidas — um exemplo fantástico de como a investigação em Cosmologia tem implicações profundas na Física de Partículas. A publicação dos dados sobre a polarização do CMB pela equipa da missão Planck, que deverá estar para breve, permitirá ainda determinar a temperatura associada ao CνB e verificar se está de acordo com as previsões teóricas de 1.95 kelvin.

Desta forma inesperada, o Planck abriu-nos uma janela directa para os primeiros instantes do Universo, para uma era muito anterior e muito mais energética do que aquela que vemos fossilizada na radiação cósmica de fundo de microondas.

(Fonte: Starts With A Bang!)

2 comentários

  1. Não se faz necessário aprovar este comentário, em particular

    O Prof. Luís pode executar pequenas correções quando referir-se à escala de temperatura absoluta (K), escrevendo-a em letra minúscula, kelvin, quando mencionada por extenso, de acordo com o Sistema Internacional.

    Cavalcanti

  2. Leitura agradabilíssima, fácil para nós, leigos.

    Excelente post, sr. Luís.

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