Célula avó, a história de um neurónio especial

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“Numa montanha distante vive um desconhecido mas talentoso neurocirurgião, Akakhi Akakhievitch. Convencido de que ideias específicas estão localizadas em células específicas no cérebro, Akakhi decidiu encontrar aquelas que estão relacionadas com a “coisa” mais primordial na nossa memória: a nossa mãe. Depois de extenso trabalho laboratorial, este incrível cientista conseguiu localizar 18 mil neurónios unicamente responsáveis pela codificação do conceito “mãe” em todas as suas facetas (fotos, representações, vista de cima, de lado, na diagonal, …, caricaturas, abstracções, etc.). Quando estava a preparar o artigo científico a resumir as suas descobertas que de certo lhe iam granjear o Prémio Nobel, apareceu-lhe no seu gabinete Portnoy, um sujeito famoso por ter colocado a mãe em tribunal. Alguém que daria tudo para esquecer a sua mãe. Akakhi não poderia desejar maior sorte: conduziu Portnoy para a mesa de operações, enquanto lhe garantia que os seus problemas iriam desaparecer.

Depois de localizar os 18 mil neurónios no cérebro de Portnoy, Akakhi extraiu-os com enorme precisão. Após uma rápida recuperação da operação, Akakhi entrevistou o paciente:
– Portnoy?
– Sim?
– Lembraste da tua mãe?
– Hun?
(Akakhi Akakhievitch mal consegue conter o entusiasmo. Deverá levar Portnoy consigo até Estocolmo?)
– Lembras-te do teu pai?
– Claro.
– Com quem era casado o teu pai?
– … – inexpressivamente, encolhe os ombros.
– Lembraste dos bolinhos que comias todas as quintas-feiras?
– Sim! Eram deliciosos!
– Quem é que os cozinhava?
– …
– Lembraste dos maus tratos que sofreste quando eras pequeno?
– Claro, como poderia esquecer?
– Quem é que te batia?
– …
Akakhi continuou a fazer perguntas, mas o resultado foi invariavelmente o mesmo. Portnoy não tinha qualquer memória da sua mãe.

Mais tarde, Akakhievitch continuou os seus estudos… desta vez dedicados… às “células avós”.”

Esta é uma adaptação livre que fiz da história inventada por Lettvin em 1969, uma parábola criada para ilustrar o conceito da “célula avó” (grandmother cell).

Uma “célula avó” é um neurónio hipotético que codifica uma informação associada a uma representação específica, por exemplo da nossa avó. Será que o nosso cérebro faz uso deste tipo de codificação de informação?

grandmothercells

O conceito da “célula avó” surgiu inicialmente com um outro nome: neurónio gnóstico (gnostic neuron). Gnóstico significa “aquele que sabe”, ou “que tem conhecimento de” (em antítese com “agnóstico”, que, no contexto religioso, indica alguém que assume desconhecer se Deus existe ou não). Os neurónios gnósticos foram sugeridos pelo neurofisiólogo polaco Jerzy Konorski em 1967 no seu livro “Integrative Activity of the Brain” (“Actividade Integrativa do Cérebro”). Konorski propôs a existência destes neurónios caracterizados por “responderem” a apenas estímulos extremamente específicos, como sejam faces, objectos, locais, etc..

Como expliquei no artigo sobre o Cérebro, os neurónios são células que recebem/ emitem sinais electroquímicos de/ para outros neurónios. O conceito “avó” pode-nos ser apresentado de diversas formas, em diferentes “estímulos”: uma foto será um estímulo visual, enquanto que uma gravação de voz será um estímulo auditivo, por exemplo. O reconhecer de um estímulo implica a recordação, ou se preferirem, a “activação” de uma memória. Tratando-se de um estímulo visual, primeiro as células da retina respondem à luz incidente, e activam outras células, que por sua vez activam outras que conduzem a informação visual até ao cérebro. No cérebro a informação é “decomposta” nas unidades mais simples, o que significa que haverá células que só irão responder a certas características do estímulo presente. Esta é em princípio parte da forma como o cérebro “compreende” aquilo que os olhos vêem. Os neurónios gnósticos seriam então células altamente especializadas que só seriam activadas caso o estímulo presente tivesse as características que estas células representavam. A activação destas células implicaria que o cérebro tinha “reconhecido” no estímulo apresentado a memória codificada nessas células.

JerzyKonorski

Jerzy Konorski (1903-1973), neurofisiólogo polaco. Trabalhou no laboratório de Ivan Pavlov e desenvolveu o conceito de condicionamento operante (ver Memória III). Além do conceito de neurónio gnóstico, também fundou as ideias iniciais sobre plasticidade sináptica (em paralelo com Donald Hebb).

De onde terá surgido a ideia de Konorski? As suas ideias eram baseadas em três linhas de investigação: primeiro, Hubel e Wiesel tinham apresentado provas para a existência de uma hierarquia no processamento de informação sensorial (ver penúltimo parágrafo do artigo sobre a História do Cérebro); segundo, Karl Pribram e Mort Mishkin tinham estudado os efeitos cognitivos de lesões no córtex de macacos (certas lesões localizadas resultavam em perdas cognitivas específicas); terceiro, da sua experiência clínica, Konorski tinha conhecimento de vários tipos de agnosias em humanos (ver Memória II, onde falo sobre agnosias). Em particular, tinha conhecimento de que em muitos casos as agnosias podem ser bastante específicas, estando relacionadas com lesões em partes específicas do cérebro. Assim, os neurónios gnósticos constituiriam o limite dessa especificidade.

No começo dos anos 70, as ideias de Konorski começaram a ser confirmadas experimentalmente. Charles Gross e colegas mostraram que existiam neurónios no córtex de macacos que respondiam selectivamente a mãos e faces. Já em finais do século XX, surgiram evidências de que existem células no hipocampo humano que são também altamente selectivas, respondendo apenas, por exemplo, a faces humanas.

Contudo, não se encontraram ainda células que sejam tão selectivas que só respondam mesmo a uma só face, como as hipotéticas células avó. Mesmo as células mais selectivas respondem a uma variedade de faces. As células normalmente variam na sua resposta em função de vários aspectos das faces, o que sugere que haja uma especificação sobre o tipo de faces, ao invés de detectarem faces específicas. Portanto, a nossa avó é à partida codificada por um grupo de células especializadas em várias características que constituem a sua representação.

Também é bom referir que embora exista esta alta especificidade em faces, o mesmo não acontece para outras “coisas”, ou outros animais (por exemplo, dois gatos com tamanho e cor semelhantes podem ser facilmente confundidos, ainda que tenham faces diferentes). É natural que assim seja visto que a capacidade de diferenciar faces humanas é algo de que necessitamos mais do que a capacidade de distinguir gatos. Além disto, a capacidade de distinguir entre faces (ou outras coisas) é algo que é aprendido pelo nosso cérebro. Se treinarmos a distinguir algo, eventualmente começaremos a conseguir encontrar com maior facilidade as diferenças. Note-se, por exemplo, que a nossa capacidade de distinguir faces é limitada àquelas que mais vezes observamos (a um chinês os portugueses podem parecer todos iguais, enquanto que  a um português os chineses podem parecer todos iguais…).

A ideia de que as representações podem convergir no nosso cérebro para a actividade de células individuais é anterior às células avó. William James sugeriu o conceito de célula pontífice (ou pontifical) no livro Principles of Psychology (Princípios de Psicologia) em 1890, a qual seria uma célula que presidiria e definiria a nossa consciência. Ou seja, a actividade de todas as células convergiria para esta. Em 1972, Horace Barlow achou que o conceito de células avó não era adequado para representar os aspectos múltiplos de uma ideia abstracta, e por isso propôs que uma dada percepção seria representada por um pequeno número de células. Inspirado por James, chamou-as de células cardeais, visto que além de serem muitas células, tal como os cardeais estão abaixo na hierarquia em relação ao pontífice (papa).

De qualquer forma, o nosso conhecimento sobre os mecanismos da memória é ainda muito deficiente. A procura pela cifra usada pelo cérebro para codificar a memória continua…

'I'm sure I paid you in advance, didn't I?'

Diploma na parede: “Terapeuta do síndrome de falsas memórias.”
Paciente: “Tenho a certeza que lhe paguei adiantado, não foi?”

 

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