O caso da Galáxia Anã contaminada com Ouro

A galáxia Reticulum II, na constelação do Retículo, no hemisfério Sul, foi descoberta em 2015 com a revolucionária Dark Energy Camera instalada no Cerro Tololo Inter-American Observatory, no Chile. Situada a 100 mil anos-luz, e com um diâmetro de apenas 100 anos-luz, a pequena galáxia é uma das várias dezenas de satélites identificadas da Via Láctea. Pensar-se-ia que, com um tal palmarés, não atrairia particular interesse entre os astrónomos. Mas o diabo está nos detalhes…

A máscara mortuária de ouro maciço do faraó Tutankhamun. Crédito: Kenneth Garrett / National Geographic Creative.

A máscara mortuária de ouro maciço do faraó Tutankhamun.
Crédito: Kenneth Garrett / National Geographic Creative.

No número de 31 de Março (deste ano) da revista Nature, uma equipa de astrónomos reporta observações espectroscópicas das estrelas mais brilhantes da galáxia realizadas com os telescópios Magellan, do Las Campanas Observatory, no Chile. Os dados mostram que o gás das estrelas apresenta níveis de contaminação por elementos mais pesados do que o zinco duas a três ordens de magnitude superiores aos observados em galáxias similares. Estamos a falar de elementos como a prata, o iodo, o ouro, o mercúrio, o chumbo e o urânio, cujos núcleos têm várias dezenas de protões e um número ainda maior de neutrões.

Esta peculiaridade química das estrelas da Reticulum II não pode ter sido resultado do enriquecimento gradual do gás nestes elementos por estrelas maciças que explodiram em supernovas e disseminaram estes elementos no espaço interestelar. As abundâncias observadas são consistentes com um outro cenário mais espectacular, em que um único evento, uma colisão de duas estrelas de neutrões, teria sintetizado e dispersado grande quantidade destes elementos pelo espaço interestelar, contaminando as estrelas. De facto, os dados recolhidos pelos autores corroboram uma teoria com alguns anos que propõe que a maior parte dos elementos mais pesados do que o zinco são sintetizados nestas colisões e não no interior de estrelas maciças durante a fase de supernova.

A colisão de duas estrelas de neutrões num sistema binário dá origem a uma erupção curta de raios gama e à (provável) formação de um buraco negro. Parte dos elementos do processo-r sintetizados durante a colisão são dispersados pelo espaço interestelar. Crédito: National Astronomical Observatory of Japan.

A colisão de duas estrelas de neutrões num sistema binário dá origem a uma erupção curta de raios gama e à (provável) formação de um buraco negro. Parte dos elementos do processo-r sintetizados durante a colisão são dispersados pelo espaço interestelar.
Crédito: National Astronomical Observatory of Japan.

Esta teoria surpreendente, que vem ganhando suporte observacional ao longo da última década, constitui uma revisão substancial do nosso conhecimento sobre a origem destes elementos, o qual se baseia em grande parte no famoso artigo B2FH (referência aos autores: Margaret Burbidge, Geoffrey Burbidge, William Fowler e Fred Hoyle). Neste artigo seminal, os autores descrevem as várias reacções nucleares no interior das estrelas que permitem sintetizar os elementos da tabela periódica. No caso dos elementos mais pesados, o artigo sugere que estes se formam durante os primeiros momentos de uma supernova, na onda de choque de temperatura elevadíssima que percorre a estrela. Nessas circunstâncias, núcleos de elementos como o ferro e o níquel capturam um grande número de neutrões livres formando núcleos radioativos que rapidamente decaem em cascata até atingirem uma configuração estável — os núcleos de elementos pesados. Estas reacções de captura de neutrões ocorrem muito rapidamente e são por isso designadas globalmente por “processo-r”.

As abundâncias observadas para os elementos mais leves, até ao ferro e níquel, são em geral bem explicadas por este mecanismo. Já no caso dos elementos mais pesados, a discordância entre a teoria e as observações é significativa e sugere que tem de haver um outro mecanismo, que é mesmo preponderante, capaz de sintetizar e enriquecer o meio interestelar com estas espécies químicas. Produzir estes elementos, com núcleos tão pesados, requer energias extremas e a colisão entre estrelas de neutrões, que se pensa estar na origem de erupções curtas e intensas de raios gama, é um dos poucos fenómenos capazes de tal proeza. Esta teoria recebeu um forte empurrão em 2013 com a observação, por uma equipa do Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics, de uma erupção curta de raios gama seguida da emissão de luz visível e infravermelha proveniente de elementos pesados. Os astrónomos estimam que uma tal colisão ocorre numa galáxia como a Via Láctea uma vez em cada 10 mil ou 100 mil anos, o que é suficiente para explicar a abundância observada destes elementos.

(Referência: Ji el al., R-process enrichment from a single event in an ancient dwarf galaxy, Nature)

3 comentários

  1. Olá Arnaldo,

    Os elementos estáveis mais pesados são o Chumbo e o Bismuto que também são sintetizados pelo processo-r. Existem em qualquer galáxia suficientemente evoluída. A Reticulum II é anormal devido às abundâncias muito acima do normal destes elementos relativamente a galáxias semelhantes.

    Ab.

    Luís

    1. Isso pode ter sido originado por um processo diferente de super-nova.
      No processo que conhecemos o elemento mais pesado sintetizado é o Urânio.
      Talvez neste diferente possa ser possível a criação de elementos mais pesados que o Urânio.
      Qual seria o mais próximo possível?
      O Neptúnio ou seria o Plutônio ou algum outro?
      Ou não seria possível?

  2. Será que nessa galáxia existiria elementos mais pesados que o Urânio?

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