Contribuições Póstumas de um Observatório de Raios-X Japonês

O Hitomi (“olho” em japonês, mas com uma lenda associada) foi um observatório de raios-X concebido pela Agência Espacial Japonesa (JAXA) em colaboração com centros de investigação nos Estados Unidos e na Holanda. O satélite foi lançado para o espaço a 17 de Fevereiro deste ano. Um mês depois, já em órbita e quando tudo parecia correr normalmente, o sistema de estabilização do satélite deixou de funcionar — soube-se depois que devido a um erro de software — provocando a sua fragmentação e o fim prematuro da missão.

Diagrama mostrando as componentes do Hitomi. Crédito: JAXA

Diagrama mostrando as componentes do Hitomi.
Crédito: JAXA

A consternação foi enorme na comunidade científica, em particular pela perda do Soft X-ray Spectrometer (SXS), um instrumento que continha um micro-calorímetro arrefecido a 0.05 Kelvin (-273.1 Celsius!) com a capacidade de medir com precisão a energia de cada fotão de raios-X que nele entrava. Desenvolvido no Goddard Space Flight Center (NASA), tratava-se de um instrumento único, uma maravilha tecnológica capaz de produzir espectros com uma resolução nunca vista em raios-X.

Detalhe do micro-calorímetro do instrumentos SXS do Hitomi. Crédito: Goddard Space Flight Center, NASA.

Detalhe do micro-calorímetro do instrumento SXS do Hitomi.
Crédito: Goddard Space Flight Center, NASA.

Mas a perda não foi total, o Hitomi tinha já deixado um legado. No breve período em que conseguiu realizar observações, o Hitomi voltou-se durante dois dias e meio para o Enxame de Galáxias de Perseu, a uma distância de 240 milhões de anos-luz e para a galáxia elíptica gigante no seu centro. Conhecida por NGC 1275, a galáxia tem um quasar no seu centro, um enorme buraco negro super-maciço rodeado de um disco de material a temperaturas elevadíssimas e muito luminoso. Por esta razão, é uma das fontes mais intensas de raios-X e de ondas de rádio na esfera celeste.

NGC 1275 fotografada pelo Hubble. Crédito: ESA/NASA.

NGC 1275 fotografada pelo Hubble.
Crédito: ESA/NASA.

Os raios-X não provêm apenas do quasar, mas também de uma imensa atmosfera de gás inter-galáctico com uma temperatura de 50 milhões de Kelvin. Estas atmosferas são lugar comum nos centros de grandes enxames como o de Perseu, e resultam da interacção gravitacional entre as galáxias nestas regiões mais povoadas.

NGC 1275 e a atmosfera de gás inter-galáctico emissora de raios-X (cor azul). Composição da imagem anterior com uma obtida pelo telescópio Chandra. Crédito: ESA/NASA.

NGC 1275 e a atmosfera de gás inter-galáctico emissora de raios-X (cor azul).
Composição da imagem anterior com uma obtida pelo telescópio Chandra.
Crédito: ESA/NASA.

Este gás deveria, com o tempo, dissipar parte da sua energia, arrefecer e colapsar, formando novas gerações de estrelas, mas não é isso que é observado. Algo o impede de “arrefecer” e os astrónomos suspeitavam já que os culpados fossem os quasares nos centros das galáxias activas dos enxames. Mas o mecanismo exacto era desconhecido por não haver observações suficientemente precisas da velocidade do gás nestas nuvens inter-galácticas.

O espectro do gás no centro do Enxame de Perseu obtido pelo SXS tem 30 vezes melhor resolução do que os melhores obtidos até à data e mostra um grande número de linhas de emissão devidas a iões de ferro, níquel, crómio e manganês no gás inter-galáctico. Os cientistas puderam usar o efeito de Doppler nessas linhas como referência para medir a velocidade do gás numa região com 195 mil anos-luz de lado no centro do enxame.

O espectro do gás inter-galáctico no centro do Enxame de Perseu, mostrando claramente as linhas espectrais devidas a iões metálicos e que permitiram aos cientistas medir o movimento do gás. Crédito: Hitomi Collaboration / JAXA, NASA, ESA, SRON, CSA.

O espectro do gás inter-galáctico no centro do Enxame de Perseu, mostrando claramente as linhas espectrais devidas a iões metálicos e que permitiram aos cientistas medir o movimento do gás.
Crédito: Hitomi Collaboration / JAXA, NASA, ESA, SRON, CSA.

A dispersão de velocidades observada, i.e., a diferença entre as velocidades máximas do gás afastando-se e aproximando-se da Terra, foi de apenas 590 mil quilómetros por hora. Parece muito, mas é um valor modesto à escala cósmica. Por outras palavras, actualmente o gás inter-galáctico no Enxame de Perseu move-se de forma vagarosa e pouco turbulenta; está num estado quiescente, mas o buraco negro central da NGC 1275 não permite que tal situação se perpetue.

De facto, no buraco negro em actividade, parte do material no disco de acreção não atravessa o horizonte de eventos. Em vez disso é projectado para o espaço, numa direcção perpendicular ao plano do disco, sob a forma de bolhas de plasma a milhões de Kelvin (regiões negras na imagem abaixo). Estas bolhas viajam milhares de anos-luz através da galáxia e espaço inter-galáctico arrastando consigo gás da região central do enxame (por vezes visível, e.g., os filamentos vermelhos na imagem da NGC 1275). A turbulência que provocam permite-lhes transferir de forma eficiente parte da sua energia para o gás inter-galáctico, aquecendo-o e fazendo-o emitir raios-X. O buraco negro central em actividade emite regularmente destas bolhas pelo que o gás que envolve o enxame não consegue arrefecer e colapsar em nuvens moleculares para formar novas estrelas.

A imagem mostra como um buraco negro super-maciço na galáxia central de um enxame de galáxias pode aquecer o gás inter-galáctico impedindo-o de colapsar em nuvens moleculares e formar novas estrelas. Crédito: SLAC National Accelerator Laboratory.

A imagem mostra como um buraco negro super-maciço na galáxia central de um enxame de galáxias pode aquecer o gás inter-galáctico impedindo-o de colapsar em nuvens moleculares e formar novas estrelas.
Crédito: SLAC National Accelerator Laboratory.

Vale a pena meditar no potencial científico do Hitomi e nas descobertas adiadas pela sua perda prematura. Em apenas dois dias e meio de observações o “olho do dragão que subiu ao céu” recolheu dados que permitem compreender a forma como os quasares regulam o crescimento das suas galáxias hospedeiras, inibindo a formação de novas gerações de estrelas.

(Referência: “The quiescent intracluster medium in the core of the Perseus cluster”, the Hitomi Collaboration, Nature 535, 117–121)

1 comentário

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  1. Apreciei muitíssimo o artigo que escreveu. Que divulgou. Muito obrigado. antonio figueiroa

  1. […] surge em simultâneo com uma análise das observações do Enxame de Galáxias de Perseu pelo malogrado observatório de raios-X japonês Hitomi. Observações realizadas em 2014 com os observatórios de raios-X Chandra, XMM e Suzaku, […]

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