Cientistas Sugerem Origem não Exótica para Antimatéria Observada na Via Láctea

Nos anos 30 do século passado, o físico inglês Paul Dirac aplicou a Teoria da Relatividade Restrita à Mecânica Quântica e deparou-se com uma previsão notável. As equações assim corrigidas diziam que para cada partícula elementar deveria existir uma partícula semelhante com a mesma massa e carga simétrica. Pouco depois, a descoberta do positrão, a antipartícula do electrão, demonstrava que Dirac estava certo. A colisão de uma partícula com a sua antipartícula dá origem a dois fotões com energias de pelo menos o equivalente à massa em repouso de cada uma, dada pela famosa equação E=mc². A aniquilação de apenas um grama de antimatéria (com um grama de matéria) libertaria duas vezes mais energia do que a “Little Boy”, a bomba nuclear lançada pelos EUA sobre Hiroshima, em Agosto de 1945.

Imagem de uma simulação da explosão de uma supernova Ia mostrando a expansão turbulenta das reacções nucleares que produzem novos elementos e destroem a estrela.
As cores correspondem a átomos de diferentes espécies formados durante a explosão (azul — carbono e oxigénio, amarelo e verde — silício e enxofre, vermelho — níquel e ferro).
Fonte: Gauss Centre

Curiosamente, ao nível da física de partículas, a matéria e antimatéria parecem comportar-se de forma completamente simétrica, obedecendo às mesmas leis e nenhuma sendo favorecida em relação à outra. É portanto difícil explicar porque é que o nosso Universo é formado essencialmente por matéria, sendo a antimatéria relativamente rara. É um dos grandes problemas da física contemporânea. Algumas descobertas nas últimas décadas sugerem, no entanto, que a simetria referida não é assim tão perfeita e algumas interacções parecem favorecer muito ligeiramente a formação de partículas versus antipartículas. A confirmar-se, a existência deste ligeiro desequilíbrio nas condições iniciais do Universo teria aniquilado quase toda a matéria e toda a antimatéria, transformados em radiação, deixando apenas vestígios de matéria que acabou por formar os planetas, estrelas, nebulosas e galáxias que vemos!

Diagrama de Feymann que descreve a interacção de um electrão e um positrão aniquilando-se e dando origem a dois fotões com uma energia característica associada à massa em repouso das partículas.

No entanto, há fenómenos extremamente violentos no Universo que produzem antimatéria. De facto, desde há 40 anos que os cientistas sabem que o espaço interestelar na Via Láctea está permeado de fotões com uma energia característica que só pode ser explicada pela aniquilação de uma enorme quantidade de pares electrão-positrão. Algum processo tem de produzir continuamente positrões em grandes quantidades para esta radiação ser visível. De facto, os cientistas estimam que cerca de 10⁴³ positrões — 1 seguido de 43 zeros! — são aniquilados a cada segundo na nossa galáxia! Esta radiação tem a sua maior intensidade na direcção do bojo central da Via Láctea, apesar de este conter menos de metade da massa total da galáxia. Se estes positrões são produzidos maioritariamente por um mesmo processo, o bojo da nossa galáxia parece proporcionar condições ideais para a sua proliferação.

Várias hipóteses foram já propostas para explicar a produção de antimatéria na região central da Via Láctea. Uma das mais citadas recentemente sugere que os positrões são subprodutos da aniquilação de partículas de matéria negra designadas por WIMPs (Weakly Interacting Massive Particles). As galáxias como a Via Láctea parecem estar rodeadas de um halo deste material misterioso, halo esse que seria mais denso na sua região central, sendo aí mais provável a colisão e aniquilação destas partículas. No entanto, até à data, as tentativas de detecção destas partículas não deram em nada, mesmo com recurso a experiências extremamente sensíveis como o Xenon-1T. Recentemente, observações realizadas com o telescópio de raios gama Fermi, da NASA, sugerem que os positrões poderão ser emitidos por uma população de pulsares energéticos, particularmente densa no bojo da galáxia.

No número de 22 de Maio da revista Nature, uma equipa liderada pelo astrofísico Roland Crocker, da Australian National University em Canberra, sugere uma explicação ainda mais simples — que esta enorme quantidade de positrões tem origem no decaimento de elementos radioactivos produzidos por um tipo especial de supernova de tipo Ia. Este fenómeno é bem conhecido — o brilho das supernovas deve-se em grande parte ao decaimento radioactivo de isótopos sintetizados durante a explosão.

As supernovas do subtipo Ia-91bg (triângulos vermelhos) são menos luminosas do que as supernovas de tipo Ia normais (linha negra sólida). O seu brilho decai também mais depressa (valores de Δm15 maiores).
Fonte: INSPIRE

As supernovas de tipo Ia resultam da explosão termonuclear de uma anã branca — o núcleo exposto de uma estrela como o Sol, composto por carbono e oxigénio — num sistema binário. No cenário mais provável, duas anãs brancas perdem energia orbital emitindo ondas gravitacionais, percorrendo uma espiral até colidirem. A colisão desencadeia a fusão do carbono no interior de uma delas e a estrela é destruída por uma explosão 5 mil milhões de vezes mais luminosa do que o Sol. Estas supernovas de tipo Ia ditas “normais” produzem grande quantidade de isótopos radioactivos, especialmente o Níquel-56, mas as suas vidas médias são curtas e, por isso, não podem sustentar a população de positrões inferida das observações.

No entanto, um subtipo raro do tipo Ia, identificado pelo nome do primeiro exemplo publicado na literatura — a supernova “SN 1991bg” na galáxia Messier 84 — , parece fornecer uma solução particularmente simples para o problema. Supernovas deste subtipo são menos luminosas e brilham durante menos tempo do que as supernovas de tipo Ia normais. São por isso mais difíceis de observar e provavelmente isso explica também, pelo menos em parte, a sua aparente raridade. Estas explosões parecem ter origem na colisão de duas anãs brancas, mas em que uma delas é substancialmente mais leve e de composição diferente da outra — uma é mais maciça e rica em carbono e oxigénio, a outra mais leve e rica em hélio.

O decaimento do isótopo Titânio-44 em Cálcio-44 liberta raios X e raios gama para além de positrões.
Fonte: NuStar

Os modelos sugerem que, em supernovas com início em sistemas binários com estas características, o isótopo radioactivo Titânio-44, com uma vida média de 60 anos, é formado em grandes quantidades relativamente ao que acontece nas suas congéneres normais. O decaimento deste isótopo em Cálcio-44 liberta raios X e raios gama bem como positrões ao longo de uma grande janela temporal, suficiente para explicar a abundância observada. Mais, várias evidências sugerem que as supernovas semelhantes à “SN 1991bg” ocorrem em galáxias ou regiões das mesmas em que a idade média da população estelar está entre os 3 e os 6 mil milhões de anos. Esta faixa de idades é consistente com a idade das estrelas no bojo da Via Láctea, explicando assim porque é que vemos mais positrões vindos dessa região — as “SN 1991-bg” são mais comuns aí.

A maioria das colisões em sistemas binários de anãs brancas que dão origem a supernovas de tipo Ia normais (linha vermelha — modelo) acontece ao fim de algumas centenas de milhões de anos.
Por outro lado, as observações (bolas azuis) sugerem que as colisões em sistemas que dão origem a supernovas de tipo Ia-91bg (linha castanha — modelo) tipicamente só ocorrem ao fim de alguns milhares de milhões de anos.
Crédito: Crocker et al. 2017.

Esta proposta, não demonstrando inequivocamente que a população observada de positrões tem origem nas supernovas de tipo “SN 1991-bg”, tem a vantagem de explicar de forma aparentemente simples as observações, usando processos cuja física é relativamente familiar. Elimina a necessidade de recorrer a modelos com fontes mais exóticas como WIMPs, pulsares e buracos negros. Os cientistas gostam de invocar o princípio chamado de “A Navalha de Ockham” que pode ser resumido na seguinte frase: de entre todas as explicações para um fenómeno, deve ser preferida a que implica menos assunções. O tempo dirá se, neste caso, Ockham foi bom conselheiro.

Referências: R. Crocker et al. Diffuse Galactic antimatter from faint thermonuclear supernovae in old stellar populations. Nature Astronomy, May 22, 2017.

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