Reflexão: Não terraformaremos outros mundos

Getty KEES VEENENBOS/SCIENCE PHOTO LIBRARY

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A Terraformação é um dos assuntos favoritos de muitos. A terraformação de Marte, por exemplo, é o objetivo de vida do próprio Elon Musk, da SpaceX, um dos maiores empreendedores da Astronáutica na atualidade.

 

Definição: Terraformação é a denominação dada ao processo, até agora hipotético, de modificar a atmosfera e temperatura de um corpo celeste sólido até deixá-lo em condições adequadas para suportar um ecossistema com seres vivos da Terra.

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Seria formidável, sem dúvidas, acordar numa amena manhã marciana sob um céu azul, vendo ao horizonte um grande oceano que cobre o cânion colossal que um dia foi o desolador e vertiginoso Vale Marineris, e tendo no céu um disco solar mais distante e duas luas irregulares, parecendo percorrer direções opostas no céu. No entanto, o quão provável esse cenário é de se tornar real?

Desprendendo-se de suas raízes

A humanidade segue desde muito tempo um sutil processo de isolamento em relação à natureza. Enquanto desenvolve-se socialmente, avança no conhecimento tecnológico e domina o ambiente que a cerca.

As primeiras sociedades eram puramente simples e seus modos de vida se resumiam a preocupações locais e particulares, como obtenção de alimentos e defesa do território, tendo como objetivo fundamental sobreviver às variáveis do ambiente, como chuvas, doenças, etc. No entanto, as sociedades foram evoluindo. O domínio humano sobre o ambiente foi sendo natural, e conforme fomos passando de coletores e caçadores para o domínio agrícola, também mudamos de cavernas para aldeias e já limpávamos seu perímetro da presença de plantas e animais selvagens. Mais um tempo nessa cronologia acelerada e tínhamos vilarejos, cidades e impérios, construções cada vez maiores, e nosso impacto no planeta já tinha proporções geográficas. O modo de vida também se isolou cada vez mais da dependência da natureza, a agricultura e a pecuária substituíram a coleta e a caça, sistemas de irrigação substituíram as chuvas, etc. Claramente esse isolamento nunca pôde ser pleno, porém se tornou cada vez mais latente.

Nossas culturas e mitologias também se modificaram: os povos mais primitivos cultuavam deuses na forma de elementos da natureza como Sol, chuva, vento, etc.; posteriormente, com o crescimento das civilizações, os deuses foram ganhando características cada vez mais humanas, ao passo que seu poder mudava de questões locais como “fazer chover” para criadores supremos de tudo que existe, tendo o homem como centro de sua criação, e como dominador da natureza em vez de submisso à ela.

Com a revolução industrial veio o êxodo rural, e mais ainda a humanidade se distanciava da natureza, e seu impacto no planeta, outrora apenas geográfico, alcançou proporções globais, antes mesmo da sociedade no geral ter uma noção disso – e diga-se de passagem, muitos ainda não têm, como por exemplo os negacionistas do Aquecimento Global. E ainda agora, as tendências para o futuro apenas mostram mais do mesmo: coisas como engenharia genética, alimentos sintéticos, membros cibernéticos, são algumas amostras evidentes de que a tecnologia intensificará esse processo de desconexão de nossas raízes naturais, biológicas e até orgânicas.

Concluindo, é considerável a probabilidade dessa tendência continuar no futuro, levando seres humanos a se desconectar de planetas tal qual vêm se afastando da natureza. Mas, se não for terraformando outros mundos, onde a humanidade irá viver?

Mundos planeados

 

Cilindro de O’Neill

Além dos desafios tecnológicos e econômicos, a terraformação é em todos os modelos um processo tão oneroso que os frutos do mesmo só seriam colhidos gerações após os pioneiros do empreendimento, devido ao tempo investido, que é da ordem de séculos. Por outro lado, os futuros humanos podem encontrar na tecnologia de suas instalações um modo de vida muito mais sustentável que a incerteza e demora dum processo de terraformação. Além disso, será muito mais fácil e confortável um clima artificial e controlado de futuras bases espaciais que a vasta gama de calamidades geológicas e climáticas na superfície de um mundo; seja ele um planeta terraformado ou a própria Terra. Considero o crescimento das tecnologias da colonização do espaço, muito mais provável, viável e vantajoso que terraformar mundos como Marte e Vênus.

A existência das estações espaciais é um primeiro ponto nesse futuro que chegará ao êxodo planetário. Atualmente é desafiador permanecer tempos maiores no espaço, principalmente pela questão da exposição à radiação e ausência virtual de gravidade; no entanto, é uma questão relativamente breve até o avanço tecnológico superar tais limitações. Na ficção científica, especialmente aquela que é em vários aspectos preditiva do futuro científico e tecnológico, a questão gravitacional já fora resolvida num engenhoso conceito de girar a estação gerando uma gravidade artificial nas paredes da mesma através da força inercial centrífuga – tal conceito começou a ser conhecido desde a década de 1980 no Cilindro de O’Neill da obra “The High Frontier: Human Colonies in Space (1976)” , sendo explorado recentemente nos filmes de ficção como Elysium e Interestelar, mostrando que boas ficções de décadas atrás são das poucas coisas que não se tornam ultrapassadas no presente, e podem até ser pensadas para o futuro.

Pensar sobre o futuro, no entanto, não é apenas uma questão de pensar nos alcances tecnológicos a que se pode chegar, mas também pensar em como as pessoas desse futuro pensarão, que escolhas farão, como viverão, quais serão suas necessidades e soluções.

Algum tempo aperfeiçoando a vida no espaço, e provavelmente a vida na superfície dum mundo terrestre é que se tornará aos poucos mais estranha. Outras questões como a ética e a preservação da natureza da Terra que provavelmente se estenderá para mundos extraterrestres também podem contribuir para um caminho bem diferente da terraformação para colonos que provavelmente não veriam vantagens na superfície de mundos terrestres, pois praticamente tudo que se obteria de tais mundos – e só depois de todo o longo processo de formação – já se poderia obter em larga escala de um número crescente de bases artificiais, via engenharia genética, e aproveitando-se de vantagens de se poder regular a gravidade como, por exemplo, reduzi-la para favorecer o crescimento de vegetais.

A fonte de energia, aliás, será literalmente ilimitada; ela vem do coração do Sol, ou do coração de quaisquer outras estrelas que escolhermos para estacionar; são centenas de bilhões de fontes, só nesta galáxia.

Espécie Transcendente

A Seleção Natural é muito mais conhecida no campo da Biologia Evolutiva, porém a realidade é que ela funciona em vários aspectos, não apenas em seres vivos. Em simulações computacionais por exemplo, já se pode usá-la como sendo na prática uma lei universal, gerando complexos códigos randômicos, que, tal qual a Vida biológica, nunca se obteriam de forma planeada, intencional. Logo, por mais desconectados da natureza que estejam os futuros humanos, até mesmo se o transumanismo se tornar realidade, a seleção natural continuaria valendo, acabando por favorecer as populações mais adaptadas à vida no espaço.

Trans-humanismo (ou transumanismo, abreviado com H+ ou h+) é um movimento intelectual que visa transformar a condição humana através do desenvolvimento de tecnologias amplamente disponíveis para aumentar consideravelmente as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas humanas.

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Neste momento já será possível o surgimento de novas espécies humanas, transcendendo definitivamente a existência biológica, seja manipulando tal evolução geneticamente ou transferindo a própria essência para máquinas mais capazes que o cérebro humano. Esses cérebros provavelmente serão construídos imitando a seleção natural que deu origem aos ancestrais dessa nova espécie, por assim dizer, que abandonou conscientemente os últimos traços de sua natureza orgânica. E caso alguns indivíduos queiram voltar a uma vida natural na superfície de planetas, até mesmo isso será possível via engenharia genética, análogo ao que se passa no filme “Avatar”, em que corpos alienígenas adaptados a outro mundo são construídos para serem habitados por mentes humanas.

A riqueza do Universo

Ainda existe um cenário no qual os humanos futuros poderiam usar da terraformação: salvar a vida terráquea. Se a atmosfera da Terra estiver comprometida, por exemplo, uma tecnologia equivalente à da terraformação poderia ser usada para restaurá-la. Porém, quando o planeta definitivamente não fosse mais habitável, como no caso de algum cataclismo geológico ou astronômico, as espécies nativas seriam salvas o máximo possível a bordo de estações que recriam o ambiente terrestre, algo mais seguro que transportá-las pra outro mundo onde novamente estariam em algum momento  ameaçadas por outras calamidades naturais; mesmo que se conseguisse um mundo idêntico à Terra.

Cada mundo tem sua própria história. A Terra terá seu fim por vias naturais em algum momento, e tal qual em sua superfície espécies continuarão se extinguindo muitas vezes à medida que outras ocupam seu lugar, ao longo de milhões de anos, até que o próprio Sol sele o destino dessa esfera rochosa. O mesmo vale para outros mundos, e sejam habitados ou não, o facto é que alterar sua natureza para que se pareçam com a Terra é, além de algo desnecessário, uma violação dessa história própria. Terraformar Marte, por exemplo, poderia levar à extinção uma eventual vida que já esteja lá, e que nunca descobrimos, e nesse cenário futurista sequer descobriríamos. O mesmo vale para Vênus, Titã e exoplanetas potencialmente parecidos com a Terra: por mais improvável que seja uma eventual forma nativa de vida nesses mundos, o certo é que só o facto de serem parecidos com a Terra o suficiente para serem terraformados, já mostra que existe tal possibilidade.

Um processo de terraformação nunca seria menos agressivo que o maior desmatamento que estamos vendo na atualidade, por mais poético que possa ser no campo das ideias. Se estamos considerando um futuro em que a humanidade evolua social e tecnologicamente, grande será também a evolução no campo da ética e da preservação ambiental.

Agradecimento: Núrya Ramos, pelo apoio e revisão gramatical

 

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