Contas impossíveis

Neste artigo vou abordar algumas curiosidades matemáticas que envolvem cálculos onde a nossa intuição não parece ser suficiente para alcançarmos a solução. Por outras palavras, vou apresentar e justificar várias “contas” que muitas vezes são encaradas como sendo meras convenções (ou, quiçá, como caprichos dos matemáticos).

Começo por um caso muito básico: a multiplicação entre dois números negativos dá um número positivo. Por exemplo: (-2)x(-3)=6. Porquê? Se pensa que é óbvio, imagine-se a explicá-lo a uma criança que ainda não está “convertida”.

A multiplicação entre positivos é simples, tanto mais não seja pois podemos transformar a multiplicação numa soma: 2×3 = 3+3=6.

A multiplicação entre um positivo e um negativo resolve-se da mesma forma: duas vezes menos três é igual a (-3) somado duas vezes: 2x(-3)=(-3)+(-3)=-6. A multiplicação entre um negativo e um positivo pode ser mais difícil de intuir, mas resolve-se no momento em que reconhecemos que podemos alterar a ordem dos números. Sabemos que em geral A x B = B x A, o que significa que negativo vezes positivo é igual a positivo vezes negativo: (-2)x3=3x(-2)=(-2)+(-2)+(-2)=-6. Desta forma “escapámos” ao problema.

Na multiplicação entre dois números negativos já não podemos recorrer a essa escapatória. O leitor tem alguma intuição do que significa multiplicar algo um número negativo de vezes? Eu não tenho. Não obstante, a conta “existe” e tem sentido matemático!

Imagine que quer saber qual é a área de um quadrado com 19 metros de lado. É fácil: 19 x 19 = 361 metros quadrados. Teria dificuldade a fazer a conta de cabeça? Como sugeri neste artigo, pode usar um caso notável:

Ou seja,

Não há dúvidas que o caso notável está certo. Note-se que para obter a fórmula tivemos que assumir que

Por outras palavras, as contas só funcionam se o resultado da multiplicação entre negativos der um valor positivo. A lógica e outros resultados conhecidos conduzem-nos a este resultado mesmo que a intuição não nos consiga ajudar. Este tipo de procedimento tem um papel preponderante no desenvolvimento da Matemática, já que há imensos campos desta onde a nossa intuição e compreensão “natural” têm que dar lugar à lógica e à abstracção fundamentada.

 

Uma outra fonte de problemas intuitivos surge quando consideramos o zero. Somar e subtrair zero é fácil: não faz diferença. Multiplicar zero por algo, ou multiplicar algo zero vezes, também é compreensível. O dividir por zero é difícil de entender e, por isso,  creio que todos ficamos satisfeitos que o resultado não esteja definido. Os problemas surgem quando consideramos outras contas, nomeadamente as potências:

Considere que ‘a’ é um número qualquer. Qual o significado de um expoente nulo? Quando o expoente é um número natural, a potência tem o significado de uma multiplicação de ‘a’ consigo próprio um número de vezes igual ao expoente. Por exemplo, se o expoente for 4:

Com um expoente nulo é tentador pensar que tal significa que ‘a’ é multiplicado zero vezes consigo próprio, logo é como se não existisse conta e como tal o resultado ou seria zero, ou não estaria definido (tal como na divisão por zero). Não, o resultado é 1. Porquê?

Não, não é uma mera convenção, é necessário que seja 1! Podemos começar por notar que

e portanto

Esta relação verifica-se para qualquer ‘n’ e mostra-nos que sempre que reduzimos o expoente numa unidade, dividimos o resultado pelo ‘a’. Por exemplo, se

então sabemos que

Usando esta lógica concluímos que:

A mesma lógica pode ser aplicada para compreender expoentes inteiros negativos.

Uma outra forma de perceber o resultado pode ser deduzida através das regras da potenciação:

(Se a regra não for óbvia para alguém, poderei explicá-la nos comentários.)

Se n=0, tal implica que

logo

Espero que esta demonstração simples seja suficiente para esclarecer que esta potência tem mesmo que ser 1 e que não se trata de uma convenção!!

 

E se a=0? Ou seja,

Bom, este é um caso controverso. “Depende” ou “não está definido” são as respostas mais prudentes, não obstante, “assumir” que seja 1 é em geral a “opção” mais coerente. Porquê? O raciocínio de cima envolvendo recorrência não se aplica pois não podemos dividir por zero. Note-se que zero com um qualquer expoente diferente de zero dá zero. Por exemplo, zero ao quadrado é 0x0=0.

Em Matemática, quando não sabemos o valor de uma função num dado ponto é comum estudar-se o limite da função à medida que nos aproximamos desse ponto. Neste caso, 0^0 pode ser encarado como um ponto especial da expressão x^x quando x=0. Por isso, podemos estudar o comportamento x^x à medida que nos aproximamos de zero. Pode fazê-lo numa calculadora.

Usando o google:

graph

A linha azul corresponde à função x^x (se tiver dificuldades a interpretar o gráfico, peça mais detalhes nos comentários). Como se pode ver, a linha tende para 1 quando x tende para zero. Assim, 0^0 = 1. (Se conhecer o binómio de Newton, pode encontrar aí uma outra razão pela qual 0^0 “deve” ser 1. Se quiser, poderei dar mais detalhes nos comentários.)

 

Um outro exemplo difícil de compreender é o de factorial de zero: 0!

Para quem não sabe, o ponto de exclamação representa a operação “factorial”, a qual para um número natural ‘n’ é dada pelo produto de todos os naturais até n:

Por exemplo,

A definição parece só “funcionar” para números naturais, não obstante, isso não nos impede de definir o valor de 0!. A solução pode ser de novo encontrada usando a noção de recorrência, tal como no exemplo da potência de zero. Quer experimentar a resolver?

Basta reconhecer que

Logo

Portanto

Existem outras razões pelas quais 0! tem que ser 1, nomeadamente se estudarmos a função gama, que é a generalização contínua do factorial. Se tiver interesse, poderei dar mais detalhes nos comentários.

Concluo este artigo com um problema um pouco mais complicado envolvendo números imaginários:

A intuição dificilmente nos pode ajudar neste caso. Será que dá um número real? Será um número complexo? Será um novo tipo de número? Para quem gosta de Matemática, creio que é inevitável sentir uma certa adrenalina quando encontramos este tipo de problemas. Quem não partilha o nosso entusiasmo pode pelo menos apreciar a lógica envolvida.

Para resolver o problema é necessário recordar a fórmula de Euler:

Onde x pode ser interpretado como sendo um ângulo no plano complexo:

512px-Euler's_formula.svg

No eixo horizontal temos a componente real de x (φ na figura) enquanto que no eixo vertical temos a componente imaginária. Podemos observar que o número imaginário i corresponde a um ângulo de 90º, isto é, π/2:

Já estamos em condições de resolver o problema inicial. Se o leitor já lidou com problemas envolvendo potências, saberá que o primeiro truque a experimentar é usar um logaritmo para “desmontarmos” a potência. Aplicamos por isso a exponencial e o logaritmo à expressão inicial:

Note-se que a exponencial é a operação “inversa” do logaritmo e como tal aplicar ambas as operações não altera o resultado. Usando as propriedades dos logaritmos, conseguimos então “desmontar” a potência:

O logaritmo de i pode ser obtido através do resultado de cima:

Aplicando o logaritmo:

Substituindo na expressão anterior:

Por definição, i x i = -1, logo

Se colocarem na calculadora irão verificar que o resultado é aproximadamente 1/5. É interessante constatar que uma operação envolvendo apenas números imaginários dá um número real!

Deste resultado podem retirar uma definição de π:

 

Dou por concluída a exposição de “contas” aparentemente impossíveis. Caso o leitor tenha em mente outros problemas interessantes, sinta-se à vontade para os expor ou propor nos comentários. Caso se justifique, poderei criar uma segunda parte deste artigo para resolver outros problemas.

 

cartoon

– “Não consigo!” – “Multiplicação, hun?” – “É demasiado difícil… Desisto… Estou a deslizar para debaixo da mesa… Fui!” – “Mais uma vítima de 9×12…”
Este cartoon ilustra o problema de ensinar os alunos apenas a resolver um dado tipo de questões, ao invés de os munir com as ferramentas necessárias para resolver um qualquer problema. No exemplo em causa, caso nos restrinjamos à tabuada tradicional: 9×12 = 9x(10+2) = 9×10 + 9×2 = 90+18=108. (Ou: 9×12=(10-1)x12=120-12=108.)

1 comentário

  1. amo este site!

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