“A alma está morta”

Friedrich Nietzsche escreveu “Deus está morto”, um aforismo iluminista que anunciava que Deus não tinha de existir para dar sentido à nossa existência. De facto, o Iluminismo trouxe uma nova Filosofia baseada no poder demonstrado pela Ciência em explicar a natureza. Ilustrativo disso mesmo, Napoleão terá questionado Pierre-Simon Laplace sobre o facto deste ter escrito um livro sobre o funcionamento do universo sem contudo mencionar o criador. Laplace terá respondido: “Je n’avais pas besoin de cette hypothèse-là.” (“Não precisei de tal hipótese.”)

De forma semelhante, podemos também matar o conceito de “alma”, “espírito”, “essência”, ou o que quer que se queira chamar àquilo onde reside o nosso “Eu”!
Quais as evidências para afirmar tal coisa?

A questão deveria ser invertida: qual a evidência para assumir a existência de “alma”?

A noção platónica da divisão entre corpo e alma assenta na ignorância dos nossos antepassados. Como referi na História do Cérebro, Galeno de Pérgamo (129 ~ 216) foi o primeiro a propor que o nosso corpo era controlado pelo cérebro, mas, nessa altura, a Filosofia de Platão já tinha quase meio milénio… As evidências tornaram a proposta de Galeno irrefutável, não obstante, isso não impediu que se continuasse a acreditar que houvesse algo “mais”. Porque é que queríamos “mais”? A resposta é clara para todos: a noção de alma permite-nos sonhar com a imortalidade da nossa existência.

Contudo, a nossa existência é o que é, independentemente daquilo que gostávamos que fosse. A verdade é que não existe qualquer evidência que suporte a hipótese de que existe alma. Mais ainda, tal como Laplace disse no caso de Deus, não existe necessidade lógica de tal hipótese.

Em termos lógicos, devemos sempre ter presente a “Navalha de Occam”, Lex Parsimoniae (Lei da Parsimónia): não devemos assumir mais do que aquilo que é estritamente necessário. A questão nunca é “como podes provar que não existe?”, mas sim “como podes provar que existe?”. Caso contrário, poderíamos assumir a existência de unicórnios, fadas, elfos, dragões, e toda a mitologia que se possa inventar dada a impossibilidade de demonstrar a sua não existência.

Ao contrário das fadas, sobre as quais podemos apenas afirmar que nunca se observou nenhuma, no caso da alma podemos dizer mais do que isso. Na verdade temos imensas razões para constatarmos que é uma noção difícil de conciliar com o que podemos de facto observar.

Como disse antes, na alma é suposto residir o nosso Eu; ou, se se preferir, o Eu pode ser encarado como uma reflexão da alma. No Eu temos consciência da nossa própria existência e individualidade. É nele que encontramos o controlador que pensa, processa e decide. O que distingue o meu Eu do seu? À partida apenas o simples facto de o meu Eu ter acesso à informação que o meu corpo recebe através dos meus sentidos, enquanto que o seu Eu recebe informação do seu corpo. De um ponto de vista externo, podemos apenas analisar as manifestações desse Eu nas atitudes da pessoa, isto é, na sua personalidade.

Se o nosso Eu fosse a expressão de algo incorpóreo então estaria a salvo das doenças que corroem o nosso corpo. Não é isso que acontece, como é fácil de perceber em doenças neurodegenerativas, como a Doença de Alzheimer. Este tipo de doenças ataca as células que compõe o cérebro e com isso comprometem o funcionamento deste órgão. À medida que a doença progride, mais e mais células morrem, o que resulta não só na perda de memória, mas também em alterações notórias na personalidade do indivíduo. Se existisse alma, ter-se-ia de assumir que a mesma estava a abandonar progressivamente o corpo? Ou estaria antes a tornar-se inacessível ao corpo?

As doenças mentais são em geral doenças cerebrais. Se por um lado constatamos alterações na expressão do Eu do indivíduo, por outro conseguimos encontrar as causas físicas que conduziram a essa alteração.

Provas não faltam, caso as queiramos encarar como tal. Cirurgias cerebrais, por exemplo, podem conduzir a alterações substanciais na manifestação do Eu do indivíduo. A título de exemplo recordo o famoso acidente de Phineas Gage, bem como o caso do paciente Elliot. Ambos mostram uma relação inequívoca entre personalidade e cérebro.

 

 

O advento de novas técnicas para medir a actividade cerebral veio trazer ainda mais evidências que mostram que os nossos pensamentos podem ser mapeados no cérebro. Uma dessas técnicas é o functional Magnetic Resonance Imaging (fMRI), imagem através de ressonância magnética funcional. Esta técnica permite medir o fluxo sanguíneo no cérebro, o qual está correlacionado com o funcionamento dos neurónios que compõe o cérebro: quando os neurónios “trabalham”, consomem oxigénio, pelo que precisam de ser alimentados pelo sangue arterial (que providencia o oxigénio). Assim, regiões com um maior fluxo sanguíneo são as regiões mais “activas” no cérebro. Esta e outras técnicas permitem-nos verificar que certas partes do cérebro ficam activas em função dos pensamentos do indivíduo. É aliás através desta correlação entre actividade neuronal e pensamentos que se estão a desenvolver tecnologias que permitem uma interacção comunicada pelo nosso pensamento. Jogos e dispositivos para ajudar pessoas com deficiência são duas aplicações que já existem. Por exemplo, pessoas com o síndrome do encarceramento (locked-in syndrome) que aparentam estar em estado vegetativo, mas que na verdade têm o seu cérebro activo, são hoje em dia capazes de comunicar através de uma interface cérebro-computador. A ideia desta tecnologia é simples: como quando pensamos em algo o nosso cérebro reproduz mais ou menos sempre o mesmo padrão de actividade neuronal, então basta “ensinar” um computador a entender um dado tipo de actividade neuronal medida com um dado tipo de resposta ou comando.

Nisto tudo não precisamos de assumir a existência de alma. Seria aliás contraproducente fazê-lo. Concluindo, até que se prove o contrário, a alma está e sempre esteve morta. Ou melhor, nunca existiu.

 

cartoon_freedom

Tradução: “(1) Primeiro postulas que uma pessoa poderia ser uma alma, e e se a alma era o que tomava as decisões, então essas decisões seriam livres. (2) Depois dizes que não existe alma, que somos apenas corpos e que são estes corpos que na verdade tomam as decisões. Portanto, por alguma razão, concluís que já não somos livres. (3) No fim chegámos exactamente às mesmas circunstâncias com que começámos, mas algures pelo caminho perdemos a liberdade.”
De forma similar, já me deparei várias vezes com a noção de que se aceitarmos que somos “apenas” o resultado de uma máquina biológica que tem a capacidade de pensar de forma “consciente”, tal nos limita como seres humanos. Onde está a limitação? Aquilo que somos e sentimos não muda em concordância com a interpretação que temos de nós próprios. A natureza consegue ser suficientemente complexa para desenvolver a presunção de uma complexidade que a transcende.

8 comentários

Passar directamente para o formulário dos comentários,

  1. Excelente artigo!!! 😀

  2. Bom dia Marinho,
    Eu sigo regularmente os seus escritos e são, de facto, grandes contributos para a divulgação da ciência (juntamente com tudo deste sítio, http://www.astropt.org).
    Sobre este tema em particular, tenho no entanto uma dúvida: em conversas com amigos e familiares, alguns deles falam no disparate da reencarnação ( por exemplo, “ai, tenho uma boa vista, já fui águia noutra vida”). Ora, é óbvio que todos nós somos constituídos por biliões e biliões de átomos e quando morremos, os nossos átomos “ficam por aí”; não irão para um outro ser que nasça?
    Ou seja: não somos nós constituídos por átomos que já fizeram parte de outras estruturas vivas?
    Obrigado, continuação de um bom trabalho.

    1. Bom dia Roberto,

      Obrigado pela crítica positiva!
      Em relação à sua dúvida: sim, de facto os átomos são “reciclados”. Temos muitos átomos que pertenceram a muitas outras pessoas, animais e plantas no passado. No entanto, os olhos (bem como qualquer outro tecido humano) são constituídos por quantidades astronómicas de átomos, sendo que não vieram todos do mesmo sítio. Assim, mesmo que o olho do seu amigo tivesse átomos que já tivessem pertencido a águias, isso não garantia uma melhor visão, pois a qualidade da visão depende de toda a arquitectura do olho e não apenas de alguns átomos. Além disso, os átomos são equivalentes entre si, quer tenham pertencido ao Hitler, quer tenham feito parte do Gandhi.

      Cumprimentos,
      Marinho

    2. Para armazenar consciência é preciso mais que átomos, é preciso existir estruturas complexas de matéria operacionais feitas como o nosso cérebro faz. Assim como um átomo que faz parte de um transistor não armazena um bit de informação, é preciso muitos átomos para fazer uma miriade de transistores para guardar um bit de informação, que precisam estar energizados, dispostos em arranjos eletrônicos específicos para se poder salvar, armazenar, e por fim ser acessado. Um bit. Agora imagine uma estrutura complexa como tem o cérebro para para poder gravar, armazenar e poder-se acessar um minuto de história de uma vida. Coisa que esvai no momento que um cérebro morre, a desintegração de toda essa estutura é total, a informação guardada se esvai, assim como os bits que armazenam informação se esvaem quando destruimos os circuitos digitais complexos que armazenam os bits. Um cérebro é mais complexo, guarda a informação bioquimicamente, ou seja, uma química desfeita desmonsta a informação que guarda.

      Vamos pensar dessa real impossibilidade indo por outro caminho? Se por uma possibilidade física e biológica desconhecidas átomos também pudessem guardar muitos detalhes da memória de alguém que morreu, e isso significa contar um minuto de história, como as cores que vizualizou, os cheiros, a fisionomia das pessoas, os nomes delas, a paisagem onde o evento guardado aconteceu, o que foi conversado, que absurda sorte aqueles átomos serem transferidos para a gênese de outra pessoa, e logo serem usados no cérebro e não no fígado ou na unha do pé. E mais, tem de contar com a sorte de nunca terem sido usados antes em NENHUM outro ser vivo, pois se fosse verdade que armazenassem memórias, lembraríamos também das memórias de outros animais que aqueles átomos fizeram parte, como ratos, cavalos, tigres, pássaros, etc…

      É até engraçado ver pessoas ingenuamente relatando que “foram” reis, príncipes, “proeminentes figuras” do passado, seriam quase três bilhões de príncipes kkkk… e lha a sorte de se nascer de átomos desses príncipes…rsrs… e nenhum relato que foi um cavalo, tigre, vaca, nem dinossauro.

  3. Amigo, por gentileza poderias estar atualizado na pesquisa psiquica de mais de 2 seculos pois ainda defende uma posicao distorcida e preconceituosa. É impressionante como que mesmo apos todas as evidencias de existencia do EU fora do corpo ainda existirem defensores da tese furada de que o EU é uma secrecao do cerebro. Pior q crer em gnomo e fada é crer que o EU nao persista vivo apos a morte.

    1. Caro Fernando,

      Quais evidências? Mostre-me estudos científicos sobre elas.
      Note que relatos pessoais não constituem evidências científicas, pois caso contrário eu poderia dizer que já vi uma fada e nesse caso toda a gente teria que acreditar na existência de fadas.

      A minha posição não é preconceituosa, é antes céptica em relação a todas as supostas provas que não constituam evidências de carácter científico.

      Cumprimentos,
      Marinho

    • Álvaro Batista on 04/07/2018 at 11:10
    • Responder

    “A alma está e sempre esteve morta” diz o autor do artigo. Falta de observação. Corpo e alma são distintos. Um é material regendo-se pelas leis da matéria e alma imaterial se assim o podemos afirmar e com leis consonantes ao plano espiritual. Aliás ao contrário da afirmação do autor do artigo a alma é constituída de partículas de luz e inteligência, alma essa que pode e é captada o
    por fotografia ou mesmo vídeo. inúmeros são os exemplos existentes, tal como o nosso contante no nosso livro O Alerta da chiadoeditora. Por outro EQM, Transcomunicação instrumental e casos evidentes de reencarnação são provas dessa realidade imortal. Se a ciência não vê o problema não são das evidências mas o quanto a ciência é cega e só aceita o que melhor lhe satisfaz aos sentidos e à suposta eloquente sabedoria. Provas existem muitas da realidade da alma a que a ciência não pode negar se não quiser ser taxada de ignorante e se comportar como as religiões de outrora que condenaram Galileo Galilei. Factos são factos e a ciência a não investigar porque supostamente esta matéria lhes escapa aos instrumentos está regredindo e apenas assentando sua pretensa sabedoria em textos como o de Friedrich Nietzsche que escreveu “Deus está morto”, porque o que se vê constitui para eles a única realidade palpável. Ignoram a física quântica e o que ela pode trazer ao computo do conhecimento. A ciência peca por má vontade e por se colocar em uma posição altaneira, com absoluta razão da verdade. Mas o facto é que ignora o “só sei que nada sei” e provas que se não são provas o que são?
    A ciência necessita de um salto qualitativo e não se endeusar ou em se colocar numa redoma de vidro de um qualquer Museu poerento de outrora. Será que a ciência já desvendou todo o conhecimento do cosmos? Não é certo que até à bem pouco tempo os infinitamente pequenos só se descobriram com a descoberta do microscópio? O pretenso saber não coloca a ciência numa posição de charneira ou de conhecimento da realidade absoluta.

    1. Caro Álvaro Batista,

      Infelizmente, o seu comentário demonstra uma profunda ignorância sobre ciência, filosofia da ciência, pseudociência e não só. Não o digo para o ofender ou desmotivar, pelo contrário o reconhecer da ignorância é um excelente ponto de partida para começar a aprender.
      Primeiro deverá notar que não existe um método científico em contraste com outros métodos de obter conhecimento. O método científico é mesmo o único método que existe para se obter conhecimento. Especular e inventar (parte daquilo que integra o que disse), é importante para criar hipóteses, mas uma vez tendo hipóteses é necessário testá-las. As provas obtidas tem que depois ser reprodutíveis por outros, pois é a única forma de verificarmos se algo é de facto verdade e não apenas uma observação mal efectuada. Toda a pseudociência de que fala não passa este critério importante e é por isso que não encontra nada do que diz em revistas científicas com revisão científica.
      Enfim, já aqui responderam imensas vezes a todas as suas observações infelizes, pelo que não creio que valha a pena discutirmos cada aspecto errado do que disse. Recomendo-lhe a ler alguns dos artigos publicados neste blog sobre pseudociência:
      http://www.astropt.org/?s=pseudoci%C3%AAncia

      Falemos antes sobre provas em relação à existência de alma: indique-me estudos científicos sobre as mesmas. Isto é, estudos que mostrem provas que possam ser reproduzidas e confirmadas por outros.

      De novo fica o apelo: não desmotive. Se tem interesse sobre estes temas, leia o que a ciência tem a dizer sobre o que sabe e sobre as limitações do seu conhecimento. Cientistas em todo o mundo estão a estudar aspectos relacionados com estes e outros problemas.

      P.S.: Sobre a ciência parecer fechada sobre si mesma, recomendo-lhe a ler este artigo:
      http://www.astropt.org/2014/07/02/criar-ciencia/

      Cumprimentos,
      Marinho

Responder a Fernando Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Verified by MonsterInsights