O paciente “Tan”

Em 1864, o médico e anatomista francês Paul Broca anunciou a sua célebre frase: “Nós falamos com o hemisfério esquerdo!” Por outras palavras, Broca afirmou que a nossa capacidade de comunicar está localizada no lado esquerdo do nosso cérebro. Como é que ele chegou a esta conclusão? Seria Broca um frenologista? Será que evidências posteriores confirmaram as suas observações? Se não sabe o que foi a Frenologia, não se preocupe, é em parte bom sinal! Antes de esclarecer o que foi essa pseudociência, comecemos por conhecer o famoso paciente “Tan”.

Em meados de 1800, quando Louis Victor Leborgne tinha os seus 30 anos, deixou de súbito de conseguir falar. Tudo o que conseguia dizer era “tan”… “Tan tan!!” Apesar de ser capaz de controlar a inflexão da voz, bem como a expressividade, tudo o que lhe saía das cordas vocais era sempre “tan”. Não vendo melhorias espontâneas, foi admitido num hospital de Paris especializado em doenças mentais. A esperança inicial é que fosse uma estadia temporária, contudo o internamento prolongou-se pelo resto da vida de Leborgne: 21 anos.

À parte deste sintoma, Leborgne tinha também epilepsia, mas, fora isso, as suas capacidades motoras e cognitivas eram perfeitamente normais. Em particular, Leborgne compreendia o que lhe diziam, parecia querer comunicar, mas as palavras é que não “saíam”. Só “tan” ou “tan tan”.

Passados 10 anos surgiram outros sintomas: o braço direito ficou paralisado, seguido pela perna direita. A situação agravou-se com uma perda parcial da visão e deterioração também de certas faculdades mentais. Nos seus últimos 7 anos, o paciente Tan, como acabou baptizado pelo staff do hospital, decidiu não se levantar mais da cama.

Em 1861, dias antes de falecer, o lado direito de Leborgne tinha ficado inflamado e com gangrena, pelo que tiveram que o submeter a cirurgia. Foi aqui que os destinos de Leborgne e Paul Broca se cruzaram.

Broca não veio por causa da cirurgia, mas antes porque, como especialista em linguagem, tinha-se interessado no caso do paciente Tan. Como descrito pelo próprio Broca (tradução livre):

“Ele não conseguia dizer nada senão uma só sílaba, a qual repetia normalmente duas vezes: independentemente da questão que lhe fizéssemos, a resposta era sempre a mesma: tan, tan, combinado com uma variedade de gestos expressivos. Esta é a razão pela qual ele é conhecido em todo o hospital pelo nome Tan.”

O défice de articular discurso descrito por Broca é hoje conhecido como afasia de Broca.

Alguns dias depois, “Monsieur Leborgne” morre. Tal como os mecânicos precisam de desmontar um carro para encontrar certos problemas, também na medicina é por vezes necessário “desmontar” fazendo a autópsia.

Eis o cérebro que Broca analisou:

BrocasBrain

Este é o cérebro de Leborgne, o qual foi conservado e está num museu em Paris. Vemos nesta foto o lado esquerdo do cérebro, sendo visível uma notória deformação no lobo frontal (dentro do rectângulo vermelho).

Surge portanto a hipótese: a área afectada deveria ter algo a ver com o défice observado. Para ter a certeza, Paul Broca procurou outros pacientes com o mesmo problema. O segundo paciente estudado por Broca foi Lazare Lelong, um homem de 84 anos que há um ano que não conseguia dizer mais que apenas 5 palavras (oui, non, tois, toujours, e Lelo – numa tentativa de pronunciar o seu próprio nome).

Com a autópsia deste, Paul Broca teve a sua confirmação: também o cérebro de Lelong tinha uma lesão numa localização semelhante à encontrada no paciente Tan. Assim, parecia que a função da expressão da fala estava localizada naquela parte do cérebro. Mais ainda, estes casos apontavam para vários tipos de especialização diferentes nos mecanismos cerebrais da fala: compreensão, produção e formação. Uma lesão numa região relacionada com uma destas especializações não tinha que afectar as outras.

Como bom cientista, Broca não se apressou a anunciar as suas constatações ao mundo. Durante mais 4 anos continuou a recolher dados, isto é, a analisar autópsias de casos semelhantes. Finalmente, em 1865, Broca publicou as suas descobertas com base em mais de 25 casos.

As observações de Broca não se ficaram por aqui. Ele constatou também que com tempo e terapia, alguns dos pacientes conseguiam melhorar. De facto, na maioria dos casos que estudou, os pacientes recuperaram parte das suas capacidades dentro de algumas semanas após o diagnóstico inicial, em particular quando tiveram a oportunidade de praticar a função em défice. Broca foi mais longe e antecipou a nossa compreensão moderna sobre a forma como o cérebro se consegue adaptar a lesões ou outros tipos de perturbações: o cérebro tem a capacidade de se alterar e atribuir funções a outras regiões caso as iniciais deixem de estar disponíveis.

Não obstante Broca ter constatado correctamente que a zona da produção da fala estava localizada, o que ele não observou tão bem foi a extensão das lesões, que na verdade iam bastante para além daquilo que ele identificou. Confirmou-se isto mesmo com imagens de ressonância magnética (magnetic resonance imaging, MRI) ao cérebro preservado de Leborgne (Broca teria que ter cortado o cérebro para poder observar a extensão das lesões, já que no seu tempo não tinha este tipo de tecnologias). Além disto, na verdade existem também partes do hemisfério cerebral direito que contribuem para a fala. (Recordo também que a dicotomia entre esquerdo e direito e a sua associação respectiva com lógica e criatividade é um mito.)

 

Qual a relação do contributo de Broca com a Frenologia? A Frenologia foi uma (pseudo)ciência que na sua base assumia que as nossas faculdades cognitivas e comportamentais podiam ser localizadas no cérebro (faculdades como espiritualidade, apetite, pontualidade, etc. – ver primeira imagem deste artigo). Mais ainda, assumia que medindo as saliências do crânio era possível prever as capacidades mentais de uma pessoa.

A Frenologia foi bastante popular no início do século XIX, mas já no tempo de Broca era descredibilizada nos círculos científicos. Talvez em parte por isso Broca tenha tido tanto cuidado a recolher muitas evidências antes de afirmar que a fala estava localizada. Broca mostrou que a Frenologia não estava completamente errada: há de facto localização mas de funções e não de características psicológicas. Broca por seu lado estava certo na localização, mas não na sua extensão.

O legado mais importante de Broca para a ciência foi porventura outro: o reconhecer que podíamos aprender muito sobre o funcionamento do cérebro estudando os casos em que este não funcionava.

paul_broca

Paul Broca (1824-1880), médico, anatomista e antropologista francês. Em homenagem aos seus contributos, a região no lobo frontal que faltava no cérebro do paciente Tan é hoje denominada por área de Broca.

Para uma visão mais abrangente sobre a História das Neurociências, recomendo o artigo que escrevi há uns anos atrás: A História do Cérebro.

Para mais detalhes sobre a história do paciente Tan, podem ler este artigo na Scientific American (em inglês), o qual serviu em parte de inspiração para este artigo.

 

Psychiatrist with phrenology chart, reads bumps on head.

Uma consulta no psicólogo podia ser assim, caso a Frenologia não tivesse sido abandonada.

 

1 comentário

  1. Tinha feito uma piada fácil acerca do lado tenebroso (sinistro) da nossa capacidade de comunicação mas apagou-se
    Melhor assim

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