Einstein no mercado financeiro

Algures no final do secundário, decidi que iria para a Universidade estudar Física. Nessa altura tinha um amigo, de olho nos cursos de Economia, que achava estudar Física um desperdício de tempo. “Até te posso contar porquê”, gabava-se. E punha-se a contar uma anedota, antes de tocar para a aula seguinte.
A anedota era sobre um físico que visitava amigos no meio rural, onde o negócio era criação de galinhas e produção de ovos. Sabendo das capacidades do amigo físico em resolver problemas difíceis, os camponeses acharam que ele poderia ter a solução para o seu problema. “Queremos saber qual a forma de pôr as nossas galinhas a produzirem o máximo de ovos”. De certeza que era um problema mais simples do que os de viagens no tempo ou da evolução das estrelas. O físico pediu alguns dias e quando, de novo em casa, pôs-se a fazer contas no seu computador. Não precisou de muito para, radiante, telefonar aos seus amigos do campo: “tenho uma solução fantástica!”. “Conta-nos!”. “É simples”, disse o físico, “precisam só de assumir um pressuposto importante”. “Qual?”. “Que as vossas galinhas são… esféricas!”.
Obviamente que as galinhas não são esféricas e, dessa forma, o meu amigo pré-economista conseguia pôr o grupo a zombar da forma como os físicos abordam um problema.

Continuei contudo teimosamente a querer estudar Física e foi o que fiz. No meu primeiro ano da Universidade aprendi algumas coisas sobre viagens no tempo, outras sobre a evolução das estrelas e, além disso, percebi que, de facto, a anedota do meu amigo ilustra na perfeição a forma de nós, físicos, abordarmos um problema: assumimos muitas vezes pressupostos completamente irrealistas. Mas isso não é, de forma nenhuma, razão para zombaria. Antes pelo contrário!
Tal como as galinhas, a Terra e todos os astros não são esféricos. Todavia, a teoria da gravitação de Newton assume que a forma dos astros é esférica. Assumindo esse pressuposto – completamente falso – é possível explicar o movimento dos planetas em torno do Sol e colocar satélites de telecomunicações em órbita.
Exato: sem este tipo de pressupostos, o meu ex-colega teria hoje dificuldade em telefonar aos seus clientes em Nova Iorque!

Há pressupostos errados, mas que, se tratados de uma forma consistente, são muito apropriados para explicar fenómenos à nossa volta. De tal forma é assim, que por vezes os usamos para explicar fenómenos completamente distintos.
É o caso de uma teoria em física e o mercado financeiro, uma história que atravessa mais de 150 anos de ciência e começa com um botânico escocês em 1827, chamado Robert Brown. Brown estudava flores silvestres ao microscópio. Examinando grãos de pólen em suspensão num meio aquoso, observou partículas minúsculas destes grãos que descreviam movimentos pequenos e irregulares. Pensando que podia ser devido ao facto de se tratar de matéria orgânica com alguma desconhecida forma de movimento próprio, Brown repetiu as suas observações com matéria inorgânica e obteve os mesmos resultados. Tudo indicava que as leis da mecânica então conhecidas para um objeto macroscópico num fluído não eram válidas para tamanhos muito pequenos. Como explicar isto?

É aqui que aparece Einstein, no fantástico ano de 1905, conhecido como o ano mirabilis, quando Einstein publica quatro artigos, todos eles tratados nesta primeira edição da Revista Horizon.
O artigo desse quarteto de que vamos falar é aquele onde Einstein mostra não só como as propriedades termodinâmicas de um sistema de muitas partículas resultam das leis mecânicas que governam cada uma delas, como também, usando esse resultado, mostra evidências de que as moléculas efetivamente existem e propõe uma forma de medir o seu tamanho. Para isso, recorre a uma formulação matemática do movimento descrito por Brown, onde assume que a água é composta por uma coleção enorme de “partículas” que colidem com a partícula de pólen. Espreitando ao microscópico durante uma fração de segundo, o que se observa é na realidade um número enorme de colisões das partículas de água com a partícula de pólen cujo resultado global é “chutar” a partícula de pólen numa determinada direção. Uma vez que as colisões ocorrem com partículas vindas de todas as direções possíveis, na fração de segundo seguinte o chuto pode acontecer numa outra direção qualquer. E assim, ao longo do tempo, observamos um zigue-zague aleatório. Por isso, quando observamos algo de maiores dimensões, como uma bola, não conseguimos distinguir o zigue-zague provocado pelas moléculas da trajetória média que a bola desenha à superfície da água. Einstein mostrou que os desvios a esta trajetória média, juntamente com a temperatura e a viscosidade do fluído, estão diretamente relacionados com o tamanho das moléculas de água. Reduzindo quase tudo a pequenas esferas, Einstein explica o movimento dos grãos de pólen que Brown observou.

De uma forma mais geral, podemos descrever o movimento dos grãos de pólen como resultado de duas contribuições distintas, duas parcelas diferentes na nossa equação do movimento. Uma delas é determinística e define a trajetória média da partícula. A outra é aleatória e descreve a forma como a partícula de pólen flutua em torno da sua trajetória média, devido aos chutos das moléculas de água.

A história ainda não acabou. Além de um botânico e de um físico, entra também o mercado financeiro.
Em vez de pensar na trajetória errática de um grão de pólen em suspensão na água, podíamos pensar na evolução errática dos preços de uma ação ou opção na bolsa de valores. Não há água na bolsa de valores (pelo menos, por enquanto) mas há um mar de investidores e de compras e vendas que contribuem para que um preço ora suba, ora desça.
Será que podíamos aplicar o movimento que Brown descreve à evolução dos preços nos mercados? “Ridículo” diria o meu ex-colega. O facto é que não é uma ideia original. Nem sequer é recente. É mais antiga do que os célebres artigos de Einstein! Data de 1900 e foi formulada por Bachelier na sua tese de doutoramento, orientada por Poincaré.

Bachelier não conseguiu, contudo, fazer vingar a sua ideia e, depois de Einstein, o movimento Browniano salta para a ordem do dia só em 1973 quando três economistas, Black, Scholes e Merton, adaptam a equação de Einstein para descrever a evolução do preço de opções. Com isso medem a “difusão” dos preços – algo que os engenheiros de finanças chamam de volatilidade – a partir da qual podem estimar o lucro de determinada compra ou venda. Os três economistas – dois deles mais tarde laureados como Nobel da economia – usaram o seu modelo para enriquecer. E enriqueceram! Em 1994, Scholes, Merton e outros fundaram uma companhia de investimentos onde conseguiram nos três anos seguintes aumentar anualmente os lucros de investimentos em 40%. Tudo parecia indicar que os pressupostos usados para explicar o movimento que Brown observou ao microscópico podem ser aplicados também ao mundo das finanças. Todavia, em 1997 os retornos baixaram repentinamente e em 1998 a companhia faliu.

browniano

O que aconteceu que provocou esta mudança repentina? A resposta é simples e está na ordem do dia: ocorreu uma crise nos mercados, e uma crise é algo que viola um pressuposto básico no modelo de Einstein. Qual?

Retornemos aos grãos de pólen. As suas trajetórias são compostas por muitos saltos aleatórios, pequenos.
Saltos muito grandes ocorrem com um probabilidade tão pequena, que para ocorrerem teríamos de esperar períodos de tempo comparáveis à idade do Universo. Ora, as flutuações dos preços são, a maior parte das vezes, pequenas, mas, infelizmente, não precisamos esperar a idade do Universo para observarmos as flutuações anormais das crises financeiras. Assim, ao contrário do que nos diz o modelo de Einstein, os preços do mercado financeiro apresentam desvios extremos com uma probabilidade não desprezável.
O pressuposto das galinhas esféricas não é o mais adequado. O que fazer então, para não deixar o meu ex-colega a rir-se de novo dos físicos?

Uma possível solução é recorrer aos computadores e “recriar” a forma como pessoas e empresas compram e vendem coisas entre si. Fazendo isso, poderíamos estudar quais os cenários que menos favorecem a ocorrência de crises abruptas.
Este tipo de abordagem – chamada de modelação por agentes – vulgarizou-se entre físicos, matemáticos e informáticos com o melhoramento dos computadores no final do século passado. Um modelo de agentes tem por base a construção de um algoritmo onde as entidades do sistema que pretendemos modelar são representadas por agentes abstractos e as leis que governam a forma como os agentes interagem entre si são introduzidas ad-hoc. Depois, deixa-se o computador fazer as contas, i.e. deixamos o sistema evoluir e observamos o resultado.

Recentemente procurámos aplicar este tipo de abordagem ao sistema bancário, onde cada banco é representado como um agente e os depósitos e empréstimos são as suas conexões a bancos vizinhos. O fluxo de dinheiro através de um banco compreende a entrada de dinheiro através dos depositantes e juros dos devedores, assim como de saída de dinheiro através dos empréstimos e dos juros. Como isto ocorre entre um número grande de bancos e clientes, estamos perante uma rede intrincada de trocas financeiras.

O sistema bancário no seu todo é regulado por um organismo internacional chamado Comité de Basileia para a Estabilidade Bancária. Em 1998, este organismo impôs que os bancos, quando emprestassem dinheiro, o fizessem com uma fração do seu próprio dinheiro – o capital – e estabeleceu que essa fração fosse 8% – porquê esta percentagem? Ninguém sabe. O objetivo do comité era garantir que o total dos empréstimos fosse “seguro” por esta quantidade de dinheiro próprio e, na ocorrência de uma falência, o sistema como um todo fosse capaz de suportar o impacto dessa falência, defendendo assim os depositantes. Depois da crise de 2008, o Comité aumentou essa percentagem para 10%.

Esta medida de aumento de capital pode facilmente ser introduzida no modelo a fim de observar como variará a frequência de falências bancárias. O nosso modelo parece mostrar que as intenções e previsões do comité de Basel se confirmam… mas somente sob um pressuposto: que os bancos aceitam a consequente redução do nível dos empréstimos, i.e. do seu nível de negócio, algo que um banco tentará contrariar.
Assumindo no nosso modelo algo mais realista, isto é, que perante o aumento do capital, o banco deverá alterar a vizinhança de bancos com quem opera, por forma a atingir de novo o nível de negócios que tinha, observámos um resultado inesperado: a probabilidade de ocorrer uma reação em cadeia de falências bancárias pode inclusivamente aumentar, o que contraria as intenções da norma reguladora!

Com um estudo assim, não apresentámos nenhuma receita para enriquecer, mas obtivemos algumas evidências de que num sistema tão complexo como o sistema bancário, normas locais como o aumento do capital mínimo podem conduzir por vezes a resultados inesperados.

Por isso, se alguma vez um pré-economista vos contar a anedota do físico e das galinhas esféricas, podem sempre rematar com a história da aplicação das ideias de Einstein aos mercados financeiros.

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Artigo de Pedro Lind para a revista Horizon, referida neste post, e que nos deu autorização para reproduzirmos no AstroPT.

2 comentários

  1. Carlos Oliveira

    Fantástico!!! Adorei este texto, muito obrigado.

    Cumprimentos. 🙂

    1. Como é referido no post, o artigo não é meu, mas sim do Pedro Lind para a revista Horizon.

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