Uma Galáxia Peculiar e um Quasar-Duplo na Ursa Maior

Durante muitos anos dediquei-me à observação do céu com um telescópio, usando apenas os olhos como detectores de fotões. É o mesmo método utilizado por Galileu e várias gerações subsequentes de ilustres astrónomos até ao século XIX, altura em que foi introduzida a fotografia. Observar assim tem algo de mágico, mexe com o meu cérebro de uma forma muito primária e intensa. Não sei se produz endorfinas, mas vicia. No entanto, a experiência tem limites. Mesmo com telescópios de grandes dimensões, um observador visual consegue ver apenas objectos até magnitude 16 ou 17, com alguma dificuldade. Factores mundanos, como a logística associada ao transporte e montagem dos telescópios e a cada vez mais ubíqua poluição luminosa, conspiram para tornar a observação visual ainda mais difícil.

É neste contexto que tenho vindo a experimentar uma outra estratégia de observação que passa pela utilização de uma câmara CCD optimizada para astronomia, em vez dos olhos, para detectar fotões. Estas câmaras são muito mais sensíveis do que os nossos olhos e quando acopladas a telescópios com aberturas modestas conseguem observar facilmente objectos de magnitude 18 ou 19 com exposições curtas. Com o equipamento que uso, por exemplo, um Schmidt-Cassegrain com 20 cm de abertura, consigo registar objectos de magnitude 19 em exposições de apenas 1 minuto. Não se trata de vídeo em tempo-real, mas quase.

Nestas sessões não espreito pela ocular, observo antes o ecrã de um computador portátil onde são projectadas as imagens adquiridas pela câmara. Consigo assim ver objectos notáveis com um equipamento modesto e portátil, com muito mais detalhe do que conseguiria visualmente mesmo com um telescópio grande. Outra vantagem deste método é a possibilidade de guardar as imagens e com isso manter um registo permanente dos objectos que observo.

E vêem-se coisas fantásticas! Aqui está um exemplo: há uma semana fiz a seguinte imagem que mostra um campo com as galáxias NGC 3079 e NGC 3073, na constelação da Ursa Maior.

A vizinhança da galáxia NGC3079 observada com uma câmara CCD. Imagem obtida pelo autor na madrugada de 28 de Outubro de 2016.

A vizinhança da galáxia NGC 3079 observada com uma câmara CCD.
Imagem obtida pelo autor na madrugada de 28 de Outubro de 2016.

Situada a cerca de 50 milhões de anos-luz, NGC 3079 é uma galáxia de Seyfert, com um núcleo activo onde reside um buraco negro com uma massa de 2 milhões de sóis. A galáxia tem também a particularidade de estar a passar por um verdadeiro “baby boom”, apresentando-se pejada de maternidades estelares, visíveis como manchas difusas de cor laranja na imagem seguinte. Toda esta azáfama na NGC 3079 faz com que seja uma fonte intensa de luz infravermelha, de microondas e de ondas de rádio. De facto, a galáxia tem um dos mais poderosos masers de água conhecidos. A intensa formação de estrelas jovens e quentes junto ao núcleo parece estar também na origem de uma super-bolha de plasma estendendo-se milhares de anos-luz acima do plano dos braços espirais (detalhe na imagem).

A galáxia “baby boom” NGC3079 e a super-bolha de plasma junto ao núcleo.

A galáxia “baby boom” NGC 3079 e a super-bolha de plasma junto ao núcleo.

Mas o objecto mais interessante na minha imagem é de longe o quasar duplo QSO 0957+561 A/B, visível como um par de estrelas débeis (magnitude 17). Em 1979, os astrónomos Dennis Walsh, Robert Carswell e Ray Weymann, descobriram que este “par de estrelas” era na realidade composto por dois quasares muito próximos (5.7 segundos de arco) cujos desvios para o vermelho (um indicador da distância) eram muito semelhantes. Estes alinhamentos são altamente improváveis e os astrónomos sugeriram que se poderia tratar de 2 imagens do mesmo objecto vistas através de uma lente gravitacional, a primeira identificada a distâncias cosmológicas. Desde então o sistema foi estudado com muito pormenor por várias equipas de cientistas e o cenário sugerido por Walsh e os colegas foi confirmado.

O quasar que dá origem às duas imagens tem um desvio para o vermelho de z = 1.41, correspondendo a um tempo de viagem da luz de 8.7 mil milhões e anos! Por seu lado, a lente gravitacional é formada por um enxame de galáxias com z = 0.355, correspondente a um tempo de viagem da luz de 3.7 mil milhões de anos. Por outras palavras, está a menos de metade da distância do quasar. A maior contribuição para a lente é de uma galáxia elíptica gigante no enxame, designada por YGKOW G1, visível na imagem seguinte obtida pelo Hubble entre as duas réplicas do quasar.

Os fotões que formam cada imagem do quasar percorrem uma trajectória distinta na lente e os astrónomos conseguiram determinar que existe um desfasamento de 417 dias entre as duas imagens. Por outras palavras, dados 2 fotões que saíram ao mesmo tempo do quasar, o que vem pela trajectória correspondente à imagem A chegará à Terra 417 dias antes do que o que segue a trajectória associada à imagem B! Este desfasamento corresponde a pouco mais de 1 ano-luz de diferença na distância total percorrida pelos fotões.

O quasar duplo QSO0957+561A/B (as duas “estrelas” no centro da imagem). A galáxia elíptica gigante G1 é bem visível como uma mancha difusa alaranjada entre as imagens do quasar, mais próximo da componente B. Crédito: ESA/Hubble & NASA

O quasar duplo QSO 0957+561 A/B (as duas “estrelas” no centro da imagem). A galáxia elíptica gigante G1 é bem visível como uma mancha difusa alaranjada entre as imagens do quasar, mais próximo da componente B.
Crédito: ESA/Hubble & NASA

Referências:

Nature 279, 381–384: 0957 + 561 A, B: twin quasistellar objects or gravitational lens? D.Walsh, R.F.Carswell, R.J.Weymann, 31/05/79.

Nature 314, 144–146: A very bright water vapour maser source in the galaxy NGC3079. Aubrey D. Haschick & Willem A. Baan, 14/03/85.

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