Vigaristas apanhados

Crédito: Scott Rodgerson, Unsplash

Já tenho falado algumas vezes da vigarice da alegada mediunidade.
Além de não fazer qualquer sentido de um ponto de vista lógico-racional (supostamente, existem almas que sobrevivem, virando fantasmas, que podem viajar por todo o Universo, mas ficam “presas” na Terra só para poderem falar com alguns “iluminados”, tendo assim um destino pior que o inferno), sabe-se que é tudo um esquema que envolve várias técnicas de psicologia e do espetáculo, como Leitura a Frio, Leitura a Quente, etc. É esperado que os “clientes” não tenham espírito crítico, de modo a serem levados por vários efeitos, como o efeito Forer (falácia da validação pessoal, com frases Barnum).

No passado, eu próprio já fiz estas pequenas peças, para família e amigos, só para mostrar que é fácil enganar pessoas: apesar de eu dizer, à-cabeça, que era tudo treta, alguns familiares chegaram a chorar por eu “saber tantos segredos”, que “só podiam ser conhecidos” pela pessoa morta há várias décadas. Enfim… Ou eu tenho muito jeito para a vigarice (caso a quisesse seguir), ou alguns dos meus amigos/familiares caem facilmente nas trafulhices, mesmo comigo a dizer que é tudo treta.

Devido a este comentário recente, resolvi fazer uma pequena resenha das “vitórias” dos psíquicos…

Um dos maiores psíquicos do século XX, nos EUA, foi o carismático Morris Lamar Keene.
Após décadas a enganar pessoas (e, com isso, a ganhar centenas de milhares de dólares), ele resolveu desmascarar a vigarice.
Em 1976, ele publicou um livro, intitulado The Psychic Mafia, onde descreve como fazia os seus truques. No seu livro, ele também descreve como os alegados psíquicos partilhavam entre si a informação sobre os clientes. Ele até escreveu que roubava jóias das pessoas, sem elas notarem, para meses mais tarde mostrar essas jóias em sessões espíritas, como se fossem os familiares mortos da pessoa que encontraram as jóias.
Um dos casos mais fantásticos de Keene foi quando, durante uma sessão na casa da cliente, tentou falar com Jack, um rapaz de 17 anos que tinha morrido. Keene queria que a mãe, Lona, pagasse milhares de dólares para ter “acesso” ao seu filho. A mãe, astuta, perguntou a Keene em transe qual era o nome secreto que Jack chamava à mãe (Lona), de modo a comprovar que era mesmo ele. Keene ficou atordoado, sem saber o que fazer; assim, fingiu uma dôr de cabeça e foi recuperar-se ao WC. Quando estava no WC, procurou nas gavetas, e encontrou uma Bíblia com o nome “Appleonia”. Chegou à sala e disse que Jack tinha falado com ele, enquanto estava no WC, e que o nome carinhoso para a mãe era Appleonia. E pronto, depois disso, tornou-se uma celebridade, porque isso era a “prova” que ele falava com os mortos.

Keene tinha sido um dos alunos do centro espiritual Chesterfield, que anos depois também seria exposto: com câmeras de infravermelho ocultas, percebeu-se que os “fantasmas” que se materializavam durante as sessões eram simples humanos que entravam na sala por uma porta lateral escondida.

Keene criou a expressão “síndrome do verdadeiro crente“, que se aplica a todas as pessoas que continuam a acreditar num determinado fenómeno paranormal, apesar de ter sido provado que era tudo uma fraude. Ele afirmou que esta dissonância cognitiva das pessoas é essencial para que os psíquicos tenham sucesso.


O comentário que deu origem a este artigo diz respeito a um programa na televisão norte-americana CBS, que se chama Inside Edition.
Num dos episódios desse programa, a jornalista de investigação Lisa Guerrero resolveu estudar casos de crianças desaparecidas. Como percebeu nessa altura, sempre que uma criança está desaparecida, aparecem logo uma cambada de “abutres”, que se auto-proclamam psíquicos, de modo a aproveitarem-se da dôr e do desespero dos pais. Como é dito na investigação: “Nunca um psíquico resolveu um caso de uma criança desaparecida. Nunca.”

Ela resolveu contactar um desses alegados “detetives psíquicos”, Laurie McQuary.
A jornalista colocou o produtor do programa a falar com a psíquica. O produtor mostrou à psíquica a foto de uma criança, que ele dizia ser a sua irmã que desapareceu quando era criança.
Após receber o pagamento de 400 dólares, Laurie McQuary disse que a criança já não estava viva, e que tinha sofrido uma morte violenta após ter sido violada repetidamente durante dias. Segundo ela, ela soube disso porque a criança lhe disse isso, a partir “do além”. Depois, pediu um mapa, onde apontou o local em que o corpo da criança tinha sido enterrado.
No dia seguinte, a jornalista Lisa Guerrero encontrou-se com a alegada psíquica Laurie McQuary e disse-lhe a verdade: a menina na fotografia era ela, Lisa Guerrero, em criança. A continuação da conversa foi surreal, com Laurie a perguntar: “Então, mas não desapareceste?”, ao que Lisa respondeu: “Eu estou aqui à sua frente”. Laurie então perguntou: “Tens a certeza? Isso é interessante.”

Acrescento que a produção do programa contatou 10 alegados psíquicos, e todos eles disseram que a menina na foto tinha sido morta. Todos eles estavam errados. 100% de erro.

Existem milhares de casos como este…

Miss Cleo era uma alegada psíquica que tinha anúncios televisivos a passarem recorrentemente nos EUA.
Ela criou uma empresa de sucesso, com um negócio que faturava milhões de dólares todos os anos.
Até um jornalista de investigação ter percebido que os diferentes psíquicos da empresa usavam todos o mesmo script (texto), que lhes tinha sido dado por Miss Cleo (o nome verdadeiro era Youree Cleomili).
O FBI fechou a empresa, após esta ser acusada de negócio fraudulento.
Mas Miss Cleo continuou a dar “consultas privadas”, onde cobrava 100 dólares, a quem quisesse continuar a ser burlado.

Recentemente, saiu a notícia de uma mulher no Canadá que foi burlada em 11 mil dólares, por um alegado psíquico que conheceu na rede social TikTok.

Uma das psíquicas mais “famosas” dos EUA neste século, foi Theresa Caputo, devido ao seu programa na televisão.
No entanto, um jornalista de investigação descobriu que os seus “poderes psíquicos” afinal vinham de pesquisar previamente a informação que as pessoas disponibilizavam no Facebook e Twitter sobre si próprias.

Já falamos de Sylvia Browne, até porque já esteve num programa em Portugal.
Essa famosa alegada psíquica também falhou inúmeras vezes: disse que crianças estavam mortas, e elas apareceram algum tempo depois.

Também já falamos de John Edward, o famoso psíquico televisivo, aqui, onde está exposta a estratégia comunicacional: a forma como fala, para apanhar os “verdadeiros crentes”.

O alegado psíquico do momento é Tyler Henry, que convenceu inúmeras celebridades (ignorantes) de Hollywood que tem mesmo poderes, e com isso criou um programa de televisão.
A comunicação de Tyler Henry é baseada nos truques da Leitura a Frio, sobretudo na forma de fazer as perguntas.

Lembro que a Fundação James Randi ofereceu 1 milhão de dólares a qualquer pessoa que conseguisse comprovar que tinha poderes paranormais. Nunca ninguém provou esses poderes.


Por fim, deixem-me dizer que apesar da mediunidade e afins serem uma vigarice (à luz do conhecimento, da ciência), nem todos os alegados psíquicos são vigaristas: alguns acreditam mesmo que têm esses poderes (não estão somente a enganar as pessoas). É uma crença em si próprios.

Afinal, todos nós temos a capacidade de nos enganarmos a nós próprios, e infelizmente fazêmo-lo constantemente.

Vale a pena ver a palestra de Luiz Gaziri, que fala sobre a dissonância cognitiva, que nos engana a nós próprios.
A palestra termina dizendo que a ciência não é perfeita, mas é a ferramenta mais sofisticada que existe, que mostra as nossas imperfeições e que nos pode transformar em seres mais evoluídos.

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