Rádio – Parte I

radio

Neste artigo vou falar sobre a ciência que é necessária compreender para perceber o funcionamento de um rádio. Por “rádio” poderemos entender várias coisas diferentes, mas que estão relacionadas: as ondas de rádio, estações de rádio (emissoras) e “rádio” como dispositivo para ouvir essas estações. É deste último que vou falar, ainda que vá mencionar os outros, visto que estão relacionados. (Existe ainda um elemento químico chamado rádio*, bem como um osso, mas esses não têm nada a ver com as ondas de rádio, apesar do nome ser o mesmo.) Salvaguardo que não irei falar de todas as formas possíveis de fazer um rádio, pois sendo uma tecnologia com mais de 100 anos, é natural que haja várias formas diferentes de obter o mesmo (naturalmente com vantagens diferentes do ponto de vista de engenharia). Porém, os princípios de funcionamento são basicamente todos iguais (ou semelhantes). Este artigo será dividido em duas partes. Nesta primeira parte vou-me debruçar sobre as “primeiras etapas” no processo de emissão do sinal de rádio. (Confesso que este artigo ficou bastante mais difícil do que aquilo que pretendia. A leitura dos artigos citados abaixo é quase indispensável para que possam compreender este artigo. De qualquer forma, poderão deixar as vossas dúvidas em comentário.)

*O nome “rádio”, no caso do elemento químico, está relacionado com radioactividade, que é a propriedade que certos elementos químicos têm de emitirem espontaneamente radiação (também é possível induzir elementos não radioactivos a emitirem radiação, no processo de radioactividade artificial, que ocorre nas reacções nucleares).

radwave1

As ondas de rádio são ondas electromagnéticas (luz), cujo comprimento de onda (distância entre máximos da onda) está compreendido entre 1 mm e 1 km (por convenção), o que corresponde a uma frequência entre 3 kHz e 300 GHz. As ondas de rádio que proveem de uma estação de rádio têm apenas a particularidade de terem de “algum modo” informação codificada.

Intuitivamente o leitor será certamente capaz de identificar os elementos necessários para que esta tecnologia funcione:

  1. Transformar sinal sonoro (que se pretende transmitir) em sinal eléctrico;
  2. Transformar sinal eléctrico em ondas de rádio (mantendo a mesma informação codificada), emitindo-as;
  3. Receber ondas de rádio e fazer a operação inversa do que foi feito em (2): transformar ondas electromagnéticas em sinal eléctrico;
  4. Fazer a operação inversa do que foi feito em (1): transformar sinal eléctrico em sinal sonoro.

Os dois primeiros pontos fazem parte do transmissor, enquanto que os dois últimos fazem parte do receptor. Embora seja óbvio, é talvez bom salientar que não é possível ouvir uma onda de rádio “directamente”, sem ter um dispositivo de rádio (caso contrário o nosso mundo era uma “barulheira”), pois, como disse, as ondas de rádio são ondas electromagnéticas, ou seja, luz que não vemos (porque não está na região do visível, isto é, na gama de comprimentos de onda para os quais os nossos olhos são sensíveis). O que ouvimos são ondas mecânicas (ver O Mundo que Sentimos).

Se o leitor leu o artigo sobre o Telefone (se não leu, recomenda-se que leia agora, antes de prosseguir), já sabe como resolver os problemas (1) e (4) (basicamente, pode-se usar a Lei de Faraday que traduz o movimento de um campo magnético numa corrente eléctrica, sendo por isso o íman, que cria o campo magnético, o mediador entre as oscilações mecânicas que compõe o som e o sinal eléctrico que o codifica). Passemos então directamente à questão (2): transformar o sinal eléctrico em ondas de rádio. Antes de desenvolver, lembro que os rádios são normalmente capazes de receber ondas de rádio AM e FM. AM significa “amplitude modulation” (modulação de amplitude) e FM significa “frequency modulation” (modulação de frequência), que são as duas formas fundamentais de codificar um sinal numa onda (ver a figura seguinte). Na verdade existem outras formas de codificar informação em ondas electromagnéticas, mas não vou discutir isso aqui. Para transformar o sinal eléctrico em ondas de rádio é necessário primeiro um rádio transmissor, que é um dispositivo eléctrico constituído por:

  1. Gerador do sinal portador (que na imagem abaixo tanto pode ser o do meio, como o de baixo, ainda sem a modulação);
  2. Modulador; e
  3. Conexão à antena (a qual transforma finalmente o sinal eléctrico no sinal electromagnético que é emitido).

Amfm3-en-de

O sinal de cima pode ser codificado numa onda de duas formas diferentes: na amplitude, ou na frequência da onda. Notar que a emissão do próprio sinal (o de cima) “puro” não se faz, porque, por exemplo, poderá ter um comprimento de onda demasiado alto para se poder usar ondas de rádio (notar que a frequência do som audível varia entre 20 Hz e 20 kHz).

 

Mesmo num emissor simples, existem mais detalhes técnicos (como multiplicação da frequência e filtros, por exemplo) a considerar, mas vou aqui negligenciá-los. O gerador de sinal cria um sinal sinusoidal (como aqueles da imagem acima) cuja frequência está compreendida nas frequências de rádio. Para tal é usado um oscilador de cristal, que é um componente electrónico capaz de criar sinais eléctricos com uma frequência precisa usando para tal a ressonância de um cristal em vibração (um material piezoelectrónico). Estes são também usados, por exemplo, em relógios de quartzo, sendo chamados “de quartzo”, porque o material piezoeléctrico usado neste caso é o quartzo. O efeito piezoeléctrico é uma propriedade curiosa de certos materiais que quando sujeitos a uma pressão (mecânica) geram uma corrente eléctrica (de modo similar, se lhes for aplicado um campo eléctrico, estes materiais geram uma tensão mecânica, ao alterarem a sua dimensão). Como podem supor e bem, podem ser usados em microfones ou alto-falantes, para converter oscilações mecânicas em corrente eléctrica e vice-versa, respectivamente. No caso dos relógios, ou dos geradores de sinal em geral, usam quer a propriedade directa (de transformar a pressão mecânica em sinal eléctrico), quer a propriedade indirecta (inversa): primeiro o cristal é submetido a uma tensão eléctrica, o que faz o cristal contrair (durante um tempo muito bem definido e que depende do tamanho e da forma do cristal), depois a tensão é retirada, e o cristal relaxa para a forma inicial, criando um campo eléctrico. (Na verdade, para quem sabe um pouco de electrónica, o cristal piezoeléctrico comporta-se como um circuito RLC – resistência, bobine e condensador, com uma dada frequência de ressonância, tendo, no entanto, os cristais várias vantagens sobre esses circuitos, a começar pelo facto de serem muito mais precisos e não dependerem tanto da temperatura, por exemplo.) Estes cristais costumam funcionar com frequências entre alguns kHz e centenas de MHz (para se obterem outras frequências é possível usar circuitos específicos quer para dividir a frequência, quer para a multiplicar).

cristalÀ esquerda um cristal piezoeléctrico na forma de componente eléctrico, e à direita a sua respectiva representação simbólica.

Bom, depois de ter o sinal (portador), como disse, é necessário modulá-lo de acordo com o sinal que contém a informação. Existem outras modulações para lá do AM e FM, mas não as vou aqui referir. AM foi o primeiro método de modulação inventado, e pode ser compreendido como sendo uma multiplicação entre os dois sinais. Existem várias formas de obter tal resultado, usando circuitos electrónicos simples, mas para não vos maçar, passo à frente (se quiserem mais detalhes, poderei dá-los nos comentários). AM, como sabem, não é muito usado, o que se deve ao facto de ser um tipo de transmissão mais vulnerável a interferência electromagnética (a qual poderá vir de inúmeras fontes, desde motores eléctricos, à própria electricidade estática presente na atmosfera), bem como ser ineficiente em comparação com FM. Em FM, a amplitude da onda não é alterada, apenas a frequência, o que pode ser feito usando um VCO (voltage-controlled oscillator, oscilador controlado por tensão). Os VCO’s usam uma propriedade dos díodos em polarização inversa*, que é o facto da sua capacitância** variar com a tensão eléctrica, o que permite controlar a frequência de acordo com o sinal de entrada.

* Os díodos são componentes eléctricos que usam materiais semicondutores, tendo a particularidade de deixarem passar corrente num sentido (polarização directa), mas não deixar passar no sentido oposto (polarização inversa). Irei abordá-los em maior detalhe num artigo futuro.

** A capacitância é o que caracteriza um condensador: quanto maior for esta grandeza, maior é a capacidade do condensador de acumular carga eléctrica, para uma dada tensão eléctrica aplicada. Um díodo em polarização inversa é de certo modo semelhante a um condensador.

diode

Em cima a representação de um díodo, a meio um exemplar real, e em baixo o sentido em que a corrente pode passar. Notar que um LED também é um díodo (ver mais em Lâmpadas).

Até aqui muito chinês? No próximo artigo irei continuar a explicação, passando para a antena que recebe estes sinais e os tem que emitir na forma de ondas de rádio.

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“Se as pessoas nunca tentassem nada de novo, nós não estaríamos a viver em cavernas.”

4 comentários

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    • José Simões on 06/08/2014 at 17:38
    • Responder

    Essa de limitar as ondas de rádio ao km é que é muito arbitrário.

    Na verdade existes designação internacionalmente aceite até pelo menos aos 100 000 km (3 Hz) , o que não quer dizer que ondas ainda mais longas não sejam ondas de rádio – apenas não têm designação específica, para além de serem muito difíceis de detectar.

    Já existiu muita investigação (e polémica) acerca dessa ondas para os lados dos Mm, se bem que ultimamente não se tem ouvido falar muito.

    Não tão extremo, menos polémico (não totalmente fora da polémica) e muito útil (antes do GPS) o sistema OMEGA permitiu durante muito anos aos barcos posicionarem-se no mar recebendo sinais com comprimentos de onda lá para os lados dos 30 km. Ainda no fim da década de 80 era o nosso GPS.

    http://en.wikipedia.org/wiki/Extremely_low_frequency

    http://en.wikipedia.org/wiki/OMEGA_Navigation_System

    1. Sim. Nuns sítios lê-se 1 km, noutros 10 km, noutros 100 km… O que interessa é que são ondas electromagnéticas de baixa frequência.

      Não conhecia o sistema Omega. Obrigado por partilhar.

      Cumprimentos,
      Marinho

  1. Olá Marinho,

    parabéns pelos exímios artigos aqui publicados por você, mas principalmente agracio o blog, sempre com ótimos textos divulgando a ciência de forma excepcional e diferenciada. Gostaria de perguntá-lo se um objeto à velocidade do som, passando em uma altitude da atmosfera em que há transmissão de ondas de rádio, pode interferir nas ondas eletromagnéticas. Mas minha dúvida é, particularmente, se a intensidade das ondas mecânicas em um meio físico (ar por exemplo) pode fazer com que o campo elétrico das partículas que participam da propagação de uma onda mecânica exerça alguma interferência significativa nas ondas eletromagnéticas que transitam por uma região.

    Saudações.

    1. Olá Lucas,

      Obrigado pelos elogios.

      Em relação à sua questão: não, não há interferência.

      Cumprimentos,
      Marinho

  1. […] comparamos tempos. Como já tive oportunidade de vos falar sobre o relógio de pêndulo e sobre o relógio de quartzo noutros artigos, não tomo mais do vosso tempo a falar-vos de como o […]

  2. […] na frequência de ressonância de um material piezoeléctrico (como referido no artigo sobre o rádio). Naturalmente, o problema do relógio de pêndulo está na dificuldade em manter o período […]

  3. […] Na primeira parte falei-vos um pouco sobre a modulação do sinal eléctrico a enviar, nesta segunda parte irei falar da própria transformação do sinal eléctrico em ondas de rádio. O dispositivo que faz esta operação (bem como a inversa) é a antena. Faço notar que a natureza do sinal não sofre propriamente uma mudança, pois só varia o meio em que se propaga (em ambos os casos estamos a falar em ondas electromagnéticas, num caso guiadas, no outro irradiadas). Embora aqui me esteja a referir a ondas de rádio, fica a nota de que o mesmo é aplicável para qualquer tipo de onda (apenas o tamanho da antena é que varia: quanto maior o comprimento de onda, maior tem que ser o tamanho da antena). […]

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