Eu não acredito em evolução

Não, o título desse artigo não é uma brincadeira, nem algum outro tipo de ironia. Significa exatamente o que quer significar: eu não acredito em biologia evolutiva, não mais do que eu acredito em zoologia ou botânica. Do mesmo modo, não acredito em física — muito menos no modelo padrão da física quântica —, nem em química, nem na geologia ou na astronomia. Deixe-me discorrer sobre o porquê disso.

Quem me motivou a escrever essa breve nota não foi outro senão nosso tão conhecido biólogo evolutivo, Richard Dawkins. Estava zapeando pela infinidade de baboseiras e estupidezes que invadiu a previamente aturável TV por assinatura quando acabei achando um documentário de Dawkins na GNT, intitulado “A fé cega?” (“Root of all evil”, 2006). Como o peguei pelo meio, não consegui saber se se tratava do primeiro ou do segundo episódio. Tive pena do sofrimento do pobre Dawkins em diversos momentos; dava dó ver como ele engolia em seco ao ouvir toda sorte de sandices. Às vezes ele tentava contra-argumentar, normalmente quando a idiotice chegava aos limites do inimaginável, mas no trecho que pude assistir ele geralmente só ouvia, meio que se contorcendo…

Capa do DVD "Root of all evil?", documentário de Richard Dawkins.

Capa do DVD “Root of all evil?”, documentário de Richard Dawkins.

Num determinado momento, a câmera mostra Dawkins saindo de um templo numa cidade dos Estados Unidos, logo após entrevistar um pastor. Na narração em off, Dawkins fala algo mais ou menos assim: “é triste ver como tantas pessoas deixam de acreditar na evolução para acreditar em misticismos”. Minha memória não é nada boa, mas a ideia geral da frase foi mais ou menos essa. Contudo, e é isso o que importa para essa minha breve nota, lembro-me claramente de ele ter usado o verbo to believe. Aqui principia minha dissensão.

A ciência é, antes de tudo, um método. Coincidentemente, estava lendo hoje a coluna de Lawrence Krauss na Scientific American, em que ele aborda exatamente essa questão: a ciência é ensinada aos nossos alunos, principalmente os mais jovens, como uma coleção de factos e informações, e não como um processo de eliminar absurdos e equívocos para se chegar mais perto da realidade da natureza. O processo científico é um sistema de conhecimento, em que são elaborados enunciados com pretensão de verdade. Esses enunciados podem e devem passar por um processo de verificação, após o qual são aceites ou não (quem conhece estatística ou epistemologia sabe que, na verdade, a coisa é um pouco diferente: o método científico mostra se um enunciado é ou não falso, e não se ele é ou não verdadeiro).

Desta maneira, o método científico está relacionado a uma construção do conhecimento. O que se aprende através desse método faz parte do que se conhece. Assim, eu digo que sei (conhecer) que o eixo da Terra é inclinado em relação ao plano de translação; digo que sei que os ribossomos polimerizam proteínas de acordo com a sequência nucleotídica de certos mRNAs; digo que sei que o céu é azul porque as luzes de menor comprimento de onda são absorvidas pelas moléculas atmosféricas e dispersadas aleatoriamente no espaço, e por essa mesma razão o horizonte fica mais avermelhado no pôr do sol.

Acreditar é por fé em alguma coisa, ter crença em algo como verdadeiro. Vem do latim credo, que significa “depositar confiança em, confiar em, fiar-se”. Segundo o Houaiss, acreditar é “admitir, aceitar, estar ou ficar convencido da veracidade, existência ou ocorrência de”. Pode-se até argumentar em favor do uso desse verbo, dizendo que o significado original dele é admitir algo como verdadeiro. Porém, o que de facto importa é o uso corrente das palavras, e não seu significado etimológico original: pouco vale saber que bizarro significava originalmente elegante, ou que esquisito significava raro, precioso. Hoje em dia, bizarro significa grotesco e esquisito significa estranho. Da mesma forma, acreditar está relacionado ao ato de se por fé em misticismos ou dogmas religiosos, a partir de argumentos de autoridade. Além disso, a definição do Houaiss nos fala de “estar convencido da veracidade”, e nunca é demais lembrar que essas duas palavras são bem frágeis dentro da metodologia científica: convencimento e verdade.

Incomodei-me com a narrativa de Dawkins porque, a meu ver, não se deve crer (nem se precisa…) em evolução, ou em biologia evolutiva. Como qualquer área da ciência, ela não precisa de crença: basta conhecê-la. Assim, acho que seria bem mais conveniente para Dawkins, ao invés de usar o verbo to believe, dizer “é triste ver como tantas pessoas deixam de compreender (ou estudar) evolução para acreditar em misticismos”.

Já tive oportunidade de dar uma aula sobre exobiologia, que é sempre um assunto bastante interessante para os alunos do ensino médio. Fiz uma apresentação de slides baseada principalmente nos sites de exobiologia e astrobiologia da NASA e da Agência Espacial Europeia; falei sobre interferometria, espectrometria e um monte de outros tecnicismos. Contudo, a pergunta que eu mais ouvia era “mas professor, o senhor acredita ou não em vida extraterrestre?”. O que eu tentava responder era que o que eu acreditava ou deixava de acreditar não tinha nenhuma importância. O que importa são as informações que temos, os dados que conseguimos coletar, os projetos de análise que estão em curso, e assim por diante. Minhas “crenças” não têm nada a ver com isso. Infelizmente, acho que a maioria não compreendeu… Uma pergunta mais pertinente seria algo como “de acordo com os dados acumulados até hoje, há alguma evidência ou possibilidade de existência de vida fora da Terra?”. Perceba que é uma forma bem melhor de colocar a questão.

Algo semelhante pode ser encontrado na página 759 do livro “Evolutionary Biology”, de Douglas Futuyma — que, não escondo de ninguém, é o livro-texto em que mais intensamente me baseei para escrever meu livrinho sobre evolução. Lá, num texto sobre o criacionismo, Futuyma refere-se aos criacionistas como “disbelievers in evolution”. Fiquei incomodado com a descrição, pois, como já tentei deixar claro, a evolução não precisa de “crentes” (no sentido original da palavra). Escrevi sobre isso para o prof. Futuyma, que muito gentilmente aceitou o comentário.

Alguém poderia me perguntar: “você crê em alguma coisa?”. Sim, penso que há uma série de coisas nas quais podemos ou não depositar crença. Por exemplo, eu acredito no amor dos mamíferos que me cercam (minha mulher, meus amigos, meus bichos…), eu acredito na educação como motor de mudanças, eu não acredito que a humanidade conseguirá conter as emissões de carbono, eu acredito que ler é uma das coisas que retira o ser humano de sua menoridade, e assim por diante. Perceba que essas coisas que citei são passíveis de crença; a ciência, por sua vez, não. A ciência é algo para se compreender e se entender, e não para acreditar.

2 comentários

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  1. O Carl Sagan (nos livros dele que já li) tem esse cuidado de evitar usar a palavra acreditar. Ele conta no livro “O Mundo Assombrado pelos Demônios” quase a mesma história que você em relação à pergunta se ele acredita em extraterrestres.

    Acho que é difícil não escorregar de vez em quando, e falar que acredita em alguma teoria científica; é algo quase como um ateu usar as expressões “Graças a Deus!”, “Ai, meu Deus do céu” etc. Força do hábito e da cultura dominante…

      • Rogério Gomes on 23/09/2014 at 02:45
      • Responder

      Concordo plenamente com você.

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