Era Uma Vez na Galáxia de Andrómeda

No dia 20 de Agosto de 1885, o astrónomo Ernst Hartwig, do observatório de Dorpat, na Estónia, observou algo invulgar na Galáxia de Andrómeda, uma enorme galáxia espiral situada na vizinhança imediata da Via Láctea e facilmente visível a olho nú a partir de um local sem poluição luminosa. Nessa época, conheciam-se já milhares de nebulosas difusas espalhadas pelo firmamento que vinham sendo catalogadas desde o século XVII. A natureza destas nebulosas era alvo de acesa discussão entre os astrónomos. Alguns defendiam que se tratava de nebulosas protoplanetárias, sistemas solares em formação, relativamente próximos. Outros defendiam que eram outras galáxias, semelhantes à Via Látea, situadas a distâncias muito maiores.

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[Posição aproximada da SN1885, junto ao núcleo da Galáxia de Andrómeda, a 2.5 milhões de anos-luz. Crédito: Mel Helm.]

É fácil imaginar a surpresa de Hartwig quando, no decorrer de uma observação casual da “Nebulosa de Andrómeda”, como era então conhecida, detectou uma estrela de magnitude 6 próxima da sua região central. Hartwig demorou uns dias a confirmar a sua observação antes de enviar um telegrama, no dia 31 de Agosto, a descrever a descoberta. A partir dessa data a nova estrela passou a ser observada com especial atenção pela comunidade astronómica que nos deixou uma vasta literatura, essencial para a interpretação do fenómeno à luz da astrofísica moderna.

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[A curva de luz da supernova SN1885, apesar de algumas peculiaridades, é consistente com a sua classificação de tipo Ia. Crédito: Vancouleurs e Corwin, 1985.]

Hoje sabemos que a estrela de Hartwig era na realidade uma supernova, a explosão de uma estrela, a única detectada na Galáxia de Andrómeda até à data e designada por SN1885. As observações registadas na literatura mostram que estava no seu pico de brilho, com magnitude 5.9, no limite da visibilidade a olho nu, aquando da sua descoberta. Seis meses depois, no início de 1886, ainda era observável em grandes telescópios e em fotografias, com magnitude 14. O estudo dos espectros obtidos na altura mostra que se tratava de uma supernova de tipo Ia, a explosão termonuclear de uma anã branca, mas bastante atípica. Uma das características do espectro destas supernovas é uma linha nos 615 nanometros (cor laranja) devida à absorção de luz por átomos de Silício ionizados (Si II). Esta linha não estava presente no espectro da SN1885, apesar de o resto do espectro ser consistente com uma supernova de tipo Ia. Mais ainda, durante a fase de maior brilho, a supernova teve um comportamento peculiar: a sua luz era anormalmente vermelha, o seu brilho era 2 vezes inferior ao normal e diminuiu de forma demasiado rápida. A SN1885 foi uma descoberta precoce, no sentido em que só na última década foram descobertas supernovas de tipo Ia exibindo este tipo de peculiaridades. Só agora os cientistas começam a compreender o porquê destas diferenças entre as supernovas deste tipo.

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[O remanescente da SN1885 observado no ultravioleta próximo com o telescópio Mayall do Observatório de Kitt Peak. Imagem da direita (esquerda) obtida numa banda em que há (não há) absorção de fotões por parte do remanescente. Crédito: Fesen et al., 1989.]

O remanescente da SN 1885 foi detectado, finalmente, após várias tentativas frustradas, em 1989 por Robert Fesen, Andrew Hamilton e Jon Saken, utilizando o Telescópio Mayall de 4 metros no Observatório de Kitt Peak. Fesen e colaboradores utilizaram filtros no ultravioleta próximo para detectar o remanescente como um disco de absorção acentuada de luz próximo do centro da galáxia, na posição exacta onde tinha aparecido a SN1885. Os astrónomos atribuíram o excesso de absorção aos átomos de ferro existentes no remanescente — o ferro neutro tem uma linha espectral importante no ultravioleta próximo, nos 386 nanometros. O ferro é um dos elementos mais abundantes nos remanescentes de supernovas de tipo Ia, pelo que a sua presença e a forte absorção nesta zona do espectro eram esperados.

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[O remanescente da SN1885 observado no ultravioleta próximo com o Telescópio Espacial Hubble. A imagem foi obtida numa banda em torno dos 391 nm em que há absorção de fotões por parte do remanescente. Crédito: Fesen et al., 2000.]

Alguns anos mais tarde, em 2000, o mesmo Robert Fesen e outros três colaboradores, Christopher Gerardy, Kevin McLin e Andrew Hamilton, utilizaram o Telescópio Espacial Hubble para confirmar a detecção do remanescente e estudá-lo em mais detalhe. Seguindo uma abordagem semelhante, utilizaram filtros no ultravioleta próximo e detectaram o remanescente, com um filtro centrado nos 391 nanometros. Uma análise mais cuidada, demonstrou que a absorção, observada também pela equipa de Fesen em 1989, era devida a iões de cálcio (Ca II) e não ao ferro neutro (Fe I) no remanescente — o cálcio é também produzido abundantemente em supernovas de tipo Ia. A análise do efeito de Doppler — o deslocamento para o azul provocado pelo movimento do gás — da linha espectral associada ao cálcio, permitiu determinar a velocidade de expansão do remanescente em 11 mil km/s. Esta velocidade de expansão é consistente com o tamanho actual do remanescente da SN 1885, uma bolha com cerca de 8 anos-luz de diâmetro. A não detecção do remanescente em raios X por vários observatórios espaciais permite também deduzir que o remanescente está em expansão livre, i.e., sem colidir com gás e poeiras interestelares, desde a explosão. De facto, se o remanescente estivesse a colidir com material interestelar, ter-se-ia formado uma frente de choque onde o gás do remanescente e do meio interestelar seriam aquecidos até milhões de Kelvin, dando origem à emissão abundante de raios X.

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[Espectro sintético, no ultravioleta, de um remanescente de supernova com as características e idade da SN1885. Os vales abaixo da linha de referência (fluxo = 1.0) correspondem a linhas de absorção no espectro do remanescente provocadas por átomos e iões de diferentes elementos, vários dos quais estão assinalados a cor. Crédito: Fesen et al. 2000.]

Simulações realizadas em computador com modelos de supernovas de tipo Ia, ajustadas para a luminosidade e características espectrais observadas para a SN1885 e o seu remanescente, sugerem que este último deve ter um espectro muito rico em linhas devidas a elementos como o silício, cálcio, ferro, níquel, cobalto, cobre, enxofre, árgon, crómio, zinco, oxigénio, carbono, magnésio, manganésio, titânio e vanádio, elementos produzidos durante a explosão. Infelizmente, a observação do remanescente na região dos ultravioletas, que permitiria verificar a validade destes modelos para supernovas peculiares, revelou-se muito complicada, para lá mesmo do limite da sensibilidade do Hubble.

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