Astrónomos Observam Ecos da Erupção de Eta Carinae (1837-1858)

A estrela Eta (η) da constelação da Quilha (Carina), conhecida vulgarmente pelo nome de Eta Carinae, é uma das mais brilhantes e maciças da nossa galáxia. Situa-se a cerca de 7500 anos-luz, no centro de um gigantesco complexo HII (nuvens de hidrogénio ionizado pela radiação ultravioleta de estrelas jovens e maciças) conhecido pelo nome de nebulosa de Carina. É perfeitamente visível a olho nú num local escuro e é espectacular quando vista com qualquer instrumento de observação, mesmo através de uns modestos binóculos. Infelizmente só é visível em latitudes inferiores a 30 graus norte, o que estraga o espectáculo aos portugueses mas certamente faz muito felizes os nossos amigos brasileiros.


(A nebulosa de Carina. Crédito: Digitized Sky Survey (DSS), STScI/AURA, Palomar/Caltech, and UKSTU/AAO)


(Uma secção da nebulosa de Carina, NGC3372, com a posição de Eta Carinae assinalada. Crédito: NASA, ESA, N. Smith (University of California, Berkeley), and The Hubble Heritage Team (STScI/AURA))

Eta Carinae é na realidade um sistema binário, uma descoberta relativamente recente. A componente primária é um verdadeiro colosso, com uma massa estimada à nascença de cerca de 150 vezes a massa do Sol. A elevada massa permite-lhe realizar reacções nucleares a um ritmo muito superior ao de estrelas menos maciças, libertando mais energia do seu interior, o que contribui para a sua luminosidade muito elevada, nada mais nada menos do que 5 milhões de vezes a do Sol, quando consideramos todo o espectro electromagnético ! Pouco se sabe da componente secundária mas pensa-se que poderá ser uma estrela do tipo Wolf-Rayet com cerca de 30 vezes a massa solar, muito quente, e dotada de um vento estelar poderoso (electrões, protões e iões atómicos ejectados a grande velocidade pela estrela). No periastro das suas órbitas em torno do centro de gravidade comum, os ventos estelares das duas estrelas interagem violentamente libertando formas de radiação dura como raios X.

A massa elevadíssima da componente primária do sistema e o consequente fluxo prodigioso de energia por ela gerado tornam-na instável. A pressão exercida pela radiação, proveniente das reacções de fusão no seu interior, nas camadas mais exteriores da estrela é tão forte que o seu equilíbrio hidroestático (entre a gravidade que tenta comprimi-la, e a pressão interna que tenta expandi-la) é permanentemente posto em causa. Esta instabilidade pode resultar em episódios notáveis que envolvem uma reconfiguração da estrutura interna da estrela, associada à perda de uma parte substancial da sua massa. A estrela tenta livrar-se de algum “lastro” numa tentativa desesperada de assegurar a sua estabilidade.

No século XIX, entre 1837 e 1858, os astrónomos puderam testemunhar um destes episódios dramáticos. Neste período de aproximadamente 20 anos, a estrela, que normalmente tinha um brilho aparente de magnitude 4, variável mas de amplitude modesta, aumentou progressivamente a sua magnitude aparente até atingir, em 1843, o valor de -0.8. Nessa altura tornou-se na segunda estrela mais brilhante do céu, logo a seguir a Sirius. A espectroscopia estava ainda na sua infância e a estrela não pôde ser observada com o detalhe que permitisse compreender a razão de tal erupção. Poucos anos depois, no entanto, os astrónomos notaram o aparecimento de uma pequena nebulosa bipolar em torno da estrela que mais tarde se constatou ser formada por material por ela expelido ao longo dos 20 anos de erupção.


(A nebulosa bipolar que se formou em torno de Eta Carinae como resultado da grande erupção observada no século XIX. O sistema binário não é visível directamente em virtude da densa nuvem de material que o envolve. Crédito: NASA, ESA, and the Hubble SM4 ERO Team)

Já no século XX foi possível identificar noutras galáxias estrelas que passavam por erupções semelhantes. Algumas foram mesmo confundidas com supernovas anormalmente débeis. Estas estrelas são designadas de LBV (Luminous Blue Variable), numa alusão à sua elevada luminosidade, ao facto de normalmente terem tipos espectrais O, B ou A, e terem brilho variável. Eta Carinae é um distinto representante da classe. Actualmente estima-se que durante a grande erupção observada no século XIX, Eta Carinae ejectou para o espaço cerca de 20 massas solares. A energia libertada neste processo foi equivalente a cerca de 10% da energia total libertada por uma supernova de colapso gravitacional! Não admira portanto que estas estrelas sejam confundidas com supernovas noutras galáxias. Mas Eta Carinae sobreviveu.

Num artigo publicado ontem na revista Nature, um grupo de astrónomos conseguiu o feito admirável de detectar ecos de luz provenientes dessa erupção. A luz da erupção percorre o espaço em redor de Eta Carinae em todas as direcções. Dado que a erupção aconteceu há cerca de 170 anos, a luz emitida nessa altura pela Eta Carinae está agora a cerca de 170 anos-luz da estrela. Isso permite aos astrónomos seleccionar uma região do espaço em torno da estrela onde as nuvens de poeira interestelar, normalmente escuras, poderão ser temporariamente iluminadas pela passagem dessa frente de luz. Esta técnica tinha sido já utilizada para identificar ecos de luz de supernovas, por exemplo da que deu origem ao remanescente Cassiopeia A.


(A sequência de fotos à direita, da mesma região do espaço na proximidade de Eta Carinae (assinalada com um quadrado na figura da esquerda) em diferentes datas, mostram poeiras interestelares a serem progressivamente iluminadas pela frente de luz emitida durante a grande erupção. Crédito: NASA, ESA, A. Rest (Space Telescope Science Institute), CTIO)

Uma vez que se trata de luz reflectida, o seu espectro é essencialmente o de Eta Carinae por altura da erupção! A análise dos espectros obtidos revelou um facto surpreendente: durante a erupção, Eta Carinae era uma supergigante muito luminosa com um tipo espectral entre G2 e G5 e uma temperatura fotosférica de 5000 Kelvin. Esta observação é problemática. De facto, os modelos actuais, bem sucedidos com LBVs extragaláticas, explicam as erupções com base num mecanismo que envolve instabilidades devidas ao vento estelar da estrela e à opacidade do plasma que as compõe. No entanto, este mecanismo só funciona se a LBV tiver uma temperatura fotosférica suficientemente elevada, pelo menos 7000 Kelvin. Isto corresponde a supergigantes de tipo espectral A, B, ou O. A observação reportada no artigo de Nature põe Eta Carinae bem abaixo deste limite, pelo que os modelos actuais não são capazes de explicar a erupção. Os astrofísicos vão ter de encontrar uma explicação alternativa para as observações que não ponha em causa os modelos existentes ou então terão de rever de forma fundamental o que pensavam saber sobre a natureza desta estrela extraordinária.

Podem ver a notícia original aqui.

5 comentários

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  1. Eta Carinae é estupendamente linda.

  2. Depois de ver o impacto do Shoemaker–Levy 9 em Jupiter interrogo-me sempre se alguns destes eventos não serão despoletados por um super Jupiter perdido…
    Uma estrela massiva como Eta Carinae deve atrair todo o tipo de coisas… um super Jupiter, uma anã castanha… qualquer coisa “invisível” mas com massa suficiente para vir de muito longe, muito depressa, e fazer um “buraco”.
    Que tipo de energia é libertada se um planeta varias vezes o tamanho de Jupiter e em trajectória certeira acertar numa estrela?

    (estou a ter em consideração que existem duas vezes mais planetas “soltos” do que estrelas visíveis, e que alguns desses planetas eventualmente acertarão em estrelas, não de uma forma “suave” como o decair de uma orbita, mas de uma forma directa e violenta com uma velocidade incrível)

    1. Olá,

      uma colisão com um super-júpiter não geraria nem de longe a energia libertada nestes eventos. Para além disso, há um conjunto de observações que apontam claramente, no caso de Eta Carinae e no de outras LBVs, que é um mecanismo endógeno à estrela que está por detrás destas erupções.

  3. Já agora, vale ressaltar que saiu um estudo em que pesquisadores brasileiros, da Universidade de São Paulo (USP) 😀 podem ter descoberto o porque desse sistema binário, periodicamente, deixa de brilhar por cerca de 3 meses – em alguns comprimentos de onda.

    Evidentemente, apesar de ressaltar que a pesquisa foi realizada por brasileiros, a ciência está acima de qualquer nacionalidade – porém de mãos dadas com todos nós, sejamos brasileiros, portugueses, etc.

    Todos nós ganhamos com essas descobertas. É de encher os olhos.

    😀

    Ótimo artigo, Luís. 😉

    1. Obrigado.

      É um facto que vários investigadores brasileiros estiveram na vanguarda dos estudos que levaram à descoberta de que Eta Carinae era um sistema binário, e continuam a realizar trabalho de excelente nível sobre a estrela.

      Às vezes não faz mal vestir a t-shirt (ia dizer camisola, mas agora me lembro que já caí nessa esparrela uma vez no Brasil e ainda hoje devem dizer piadas sobre mim ;-)) e exaltar o trabalho de qualidade que se faz nos nossos países.

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