Não subestime a capacidade das crianças para a alfabetização científica

WilkiesForPress

Uma pesquisa da Universidade de Boston revelou resultados bem interessantes sobre a capacidade de crianças para a alfabetização científica. Ao que tudo indica, crianças podem, sim, compreender conceitos científicos complexos como a seleção natural, de forma muito além do que se podia imaginar.

Para demonstrar isso, a psicóloga de desenvolvimento cognitivo da Universidade, Debora Kelemen e seus co-pesquisadores criaram um livro de histórias de 10 páginas sobre Pilosas, um grupo de mamíferos fictícios com tronco longo para ler em voz alta para crianças de 5 a 8 anos.

As pilosas usam seus troncos para capturar insetos. No passado, a maioria das pilosas tinham troncos largos. Apenas uma pequena parcela tinha troncos finos. Então o clima extremo levou a maior parte dos insetos para o subterrâneo, através de longos e estreitos túneis onde apenas as pilosas com trombas finas poderiam alcançá-los. O “drama” se volta para uma questão central: Como as pilosas evoluíram através do tempo de um grupo de animais com uma variedade de troncos para o predomínio daqueles com troncos finos?

Creio que ficou claro que a história serve para falar sobre a adaptação pela seleção natural, que é um dos mecanismos fundamentais não só da evolução, mas de toda a biologia, além de ser um dos conceitos mais mal-interpretados da ciência, geralmente visto como tão complexo para crianças que o padrão educacional dos EUA sugere que isso não pode ser ensinado compreensivamente até a idade de 13 a 18 anos.

Mas aí é que está o ponto da pesquisa: as crianças que ouviram a história das pilosas captaram a mensagem direitinho.

“Ficamos impressionados com o que vimos. Isso mostra que as crianças são muito mais espertas do que damos crédito. Elas conseguem lidar com um grau surpreendente de complexidade quando você deixa as coisas adequadas numa forma que se encaixa com a condução natural humana por uma explicação boa e coerente.”, diz Kelemen.

A sabedoria convencional é que crianças pequenas devem ser ensinadas com apenas pedaços de factos sobre biologia, como que comida é necessária para a sobrevivência de animais, ou que animais possuem partes do corpo úteis, sem juntar os factos numa explicação sobre como o mecanismo da seleção natural funciona.

Mas por que se preocupar tentando explicar o mecanismo para crianças pequenas? Keleman e seus colegas argumentam que ensinar mais cedo pode ajudar em problemas de aprendizagem deste conteúdo mais adiante.

Crianças são caçadores naturais de explicações, segundo Keleman escreve em seu estudo. Lá pela pré-escola, começam intuitivamente a pensar que os fenômenos naturais existem com um propósito ou operam por design. Lá pelos 5 a 8 anos, começa a fazer sentido pensar que rios existem e assim crocodilos têm um lugar pra viver, ou que girafas possuem longos pescoços porque precisam deles para alcançar níveis altos das árvores.

Este tipo de pensamento impreciso cientificamente é conhecido como “explicação teleológia”, o que significa que as crianças veem os aspetos da realidade em termos de possuírem uma finalidade. Enquanto isso ajuda as crianças no raciocínio do dia a dia, este tipo de crença pode impedir a habilidade de estudantes mais velhos – e, finalmente, adultos – de entender a lógica contra-intuitiva da seleção natural. Uma espécie evoluiu através do tempo conforme os animais com certas características que se adaptam melhor com o ambiente sobrevivem e deixam descendentes numa taxa maior do que aqueles sem estas características vantajosas.

Não só as crianças entendem como as pilosas evoluem na história, mas também conseguiram realizar uma das tarefas mais difíceis do aprendizado: generalizar o conceito. Eles aplicaram o que aprenderam das pilosas para outras espécies de animais, em alguns casos, apenas depois de 3 meses.

O experimento de Kelemen começou com a questão de se era possível ensinar crianças conceitos básicos sobre adaptação para, eventualmente as crianças entenderam o mundo natural, bem como o estado fragmentário de suas ideias. O problema é que as explicações sobre seleção natural nos livros didáticos mais adiante confundem as crianças (e isso é verdade tanto nos EUA quanto aqui no Brasil). Eles antropomorfizam os animais, restringindo os factos ou dispensando com explicações mescladas. Ou os livros são tão superficiais que as crianças não conseguem se focar na história.

Por isso Kelemen e seus co-pesquisadores produziram o seu livro para a pesquisa de forma cuidadosa, combinando o que eles conheciam como psicólogos de desenvolvimento cognitivo com a pesquisa em educação científica. Eles inventaram as pilosas para que as crianças não pudessem ir para o laboratório com ideias pré-concebidas sobre estes animais. Eles mantiveram a história e as imagens simples. A narrativa a respeito de como as pilosas viviam e morriam – e a explicação sobre como e por que elas evoluíram com o tempo – se desenrolou gradualmente, com um facto biológico logicamente conectando ao próximo.

Os pesquisadores perguntaram para as crianças antes e depois de lerem para elas os livros para avaliar seu aprendizado de factos biológicos básicos – como a ligação entre comida e saúde, saúde e reprodução – e sua habilidade de integrar estes factos em uma explicação apurada e coerente de por que o corpo das pilosas mudaram através do tempo.

O aprendizado foi particularmente impressionante entre estudantes mais velhos; no segundo experimento, 100% dos estudantes de 7 e 8 anos entenderam que o motivo pelo qual as pilosas ou outros animais mudaram com o tempo foi por conta de indivíduos com traços mais benéficos para sobreviver e se reproduzir mais entre o grupo.

O que o estudo de Kelemen sugere é que uma das formas de elevar a alfabetização científica nos EUA (e não tenho razões para acreditar que seria diferente em outros lugares, como no Brasil) é começar ensinando bem cedo alguns conceitos chave que nossa tendência natural da mente torna especialmente difícil de entender – e um bom assunto pra começar é com a seleção natural. O conceito é uma base importante para a compreensão das crianças de outros fundamentos, como a diversidade das coisas vivas e a origem das espécies.

“No fim das contas, se você colocar a teoria em contexto, as crianças aprendem não só os factos, mas também compreendem a explicação completa. E elas entendem além de um nível jamais imaginado, dada a idade.”, explica Keleman, que continua: “Não estamos necessariamente nos livrando da orientação natural de pensar que tudo na natureza existe para desempenhar uma função. O que estamos fazendo é ajudando as crianças a desenvolver também maneiras alternativas de entender por que alguns tipos de funções e propósitos na natureza existem. É uma maneira cientificamente apurada que irá ajudar as crianças nas aulas de ciência e além.”

Os resultados da pesquisa de Keleman mostram que, embora nosso cérebro tenha uma tendência teleológica, é possível ensinar conceitos contraintuitivos mesmo em idades onde se pensava que as crianças não compreenderiam tais conceitos. A descoberta é surpreendente por que nos faz pensar que talvez devamos mudar a forma como vemos o aprendizado, não precisando necessariamente deixar explicações complexas para mais tarde. Aliás, isso talvez seja justamente o problema no aprendizado de ciências.

Fonte:
Boston University

2 comentários

    • rosemar kalepniek on 27/04/2014 at 13:34
    • Responder

    Olha só que texto maravilhoso! Como professora de Ensino Fundamenta I e Infantil, reconheço que o trabalho em Ciências nas escolas fica restrito à Higiene e Saúde, Alimentação Saudável, ente outros, que levam a lugar nenhum. Muitos alunos acabam mesmo é criando resistência à aprendizagem de conceitos científicos por conta desse tipo de organização curricular. Coisa que nosso país já passou do tempo de superar.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Verified by MonsterInsights