Discordando de Darwin

O título dessa postagem, não estou alheio a esse perigo, pode atrair a atenção de alguns criacionistas — mais ainda aquela cepa de criacionistas que leem apenas o título do artigo — que prontamente irão compartilhá-lo com uma descrição do tipo “até um autor do blog AstroPT diz que evolução não existe”. Contudo, qualquer pessoa um pouco mais lúcida perceberá, lendo o post, que não se trata disso, mas sim de algo bem diferente: para a ciência não interessa quem disse, mas o que foi dito. Argumentos de autoridade não têm lugar nas ciências. Não importa se Einstein disse isso, ou se Newton disse aquilo: se o enunciado está errado, não importa quem o enunciou, ele está errado e acabou. Por isso, discordar de autoridades é não apenas saudável para as ciências, mas na verdade uma de suas características sine qua non.

Essa é uma das dificuldades que eu encontro quando, por exemplo, tento explicar que a consciência (ou, para quem gosta de um pleonasmo, a consciência de si mesmo) é um fenômeno presente em todos os mamíferos. Dependendo da formação acadêmica do meu interlocutor, geralmente eu ouço um “mas o filósofo Fulano disse que apenas o homem possui consciência”. Nesse caso, o filósofo Fulano está equivocado, e pouco importa que ele seja o famoso e célebre Fulano de Tal.

Assim como Newton, que dedicou anos à transformação de metais comuns em ouro, ou Galileu, que acreditava em astrologia, Darwin também cometeu erros. Inúmeros erros. Alguns são relativamente graves, ao meu ver: no meu livro, por exemplo, eu cito o caso da explicação que Darwin dá para a origem dos cães domésticos, e considero esse um erro grave porque contradiz algo que ele mesmo escrevera poucas páginas antes! Contudo, em sua imensa maioria, os erros de Darwin são plenamente justificáveis historicamente, quando se compreende que esses erros se devem não a falhas no raciocínio de Darwin, e sim ao fato de serem conceitos plenamente aceites em sua época. Do mesmo modo que na época de Newton era comum a crença de que o chumbo poderia ser transformado em ouro, Darwin defendeu e utilizou a famigerada transmissão de caracteres adquiridos porque esse era um conceito plenamente aceite em sua época. De modo análogo, hoje em dia, eu penso que os prótons e os neutrons são compostos de quarks (dois ups e um down para o próton, dois downs e um up para o nêutron) simplesmente porque esse é o consenso atual. Mas, se daqui a 340 anos descobrirem que não é nada disso, é possível que um historiador do futuro olhe para o passado e diga “olha só esse cara, o Gerardo Furtado, que idiota, ele achava que existissem quarks!”.

Portanto, se hoje em dia, em 2015, eu pegar uma cópia da “Origem das Espécies” e uma caneta vermelha, ela vai sair com catapora de tantas marcas de correção. Isso não é uma crítica a Darwin (que considero um dos maiores gênios da humanidade) nem uma crítica à Origem (que é uma obra prima), e sim a consequência de algo óbvio e inevitável: a ciência progride, e inúmeros conceitos que são tidos como certos hoje serão desacreditados amanhã.

Depois dessa longa introdução, vamos ao que interessa:

Estava eu a vagabundear pela internet (como sempre), quando me deparei com uma citação de Darwin. Com uma ou outra variação aqui e acolá, esta é a citação:

The love for all living creatures is the most noble attribute of man.

É, certamente, uma frase muito bonita, com a qual eu — sendo utilitarista, vegetariano, defensor dos direitos dos animais etc — só posso concordar, quanto a isso não resta dúvida. É uma citação relativamente comum, compartilhada nas redes sociais, com imagens e tudo. O problema é apenas um: a citação está fora de contexto. Eis o parágrafo completo, que está no capítulo IV de “The descent of man, and selection in relation to sex”. Leia-o todo, com atenção (o sublinhado é meu, para que você ache o trecho normalmente compartilhado).

“There can be no doubt that the difference between the mind of the lowest man and that of the highest animal is immense. An anthropomorphous ape, if he could take a dispassionate view of his own case, would admit that though he could form an artful plan to plunder a garden—though he could use stones for fighting or for breaking open nuts, yet that the thought of fashioning a stone into a tool was quite beyond his scope. Still less, as he would admit, could he follow out a train of metaphysical reasoning, or solve a mathematical problem, or reflect on God, or admire a grand natural scene. Some apes, however, would probably declare that they could and did admire the beauty of the coloured skin and fur of their partners in marriage. They would admit, that though they could make other apes understand by cries some of their perceptions and simpler wants, the notion of expressing definite ideas by definite sounds had never crossed their minds. They might insist that they were ready to aid their fellow-apes of the same troop in many ways, to risk their lives for them, and to take charge of their orphans; but they would be forced to acknowledge that disinterested love for all living creatures, the most noble attribute of man, was quite beyond their comprehension.”

E com isso eu simplesmente não posso concordar. Darwin, apesar de curiosamente ter sido ele mesmo um dos precursores da etologia com seu “A expressão das emoções nos homens e nos animais”, viveu numa época em que a etologia ainda não existia como ciência, muito menos a etologia cognitiva. Enunciados como o acima, que “só o ser humano tem compaixão (disinterested love) por animais de outras espécies”, não têm suporte na etologia cognitiva atual.

A raiz do problema é bem famosa, apesar de poucas pessoas terem apontado o dedo diretamente para ela. Trata-se da necessidade do ser humano em se distinguir dos outros animais. E, por essa razão, desde a antiguidade clássica abundam frases como “o ser humano é o único animal racional”, ou “o ser humano é o único animal consciente de si mesmo” ou “o ser humano é o único animal que possui cultura”.

O poeta nos portões do inferno, de Rodin (foto: Joe deSousa).

O poeta nos portões do inferno, de Rodin (foto: Joe deSousa).

É óbvio que o ser humano é um animal único, impar, diferenciado. Isso é tão claro que dispensa qualquer comentário ou explicação: olhe para o Coliseu, para a Golden Gate, para a Notre Dame ou para a ISS. Si monumentum requiris, circumspice. O problema não é esse. O problema surge quando, de Aristóteles a Nietzsche, alguém inventa de dizer “o homem é o único animal que…”. E aí, normalmente, numa tentativa de qualificar a diferença (óbvia!) entre o homem e os demais animais, acaba-se cometendo toda sorte de erros.

Senão, vejamos:

1- O homem é o único animal que tem consciência de si mesmo.

Hoje em dia nós consideramos que todos os mamíferos e todas as aves têm consciência e estados mentais internos ou, para quem é acostumado com o termo, uma teoria da mente. Pouco interessa se um filósofo disse há 300 anos que os animais são apenas máquinas ambulantes (lembrando que, se um determinado grupo é definido como o conjunto de todos os animais exceto o homem, esse grupo é obrigatoriamente parafilético). Além disso, caso essa consciência em mamíferos e aves seja uma homologia, é possível que o fenômeno seja ainda mais inclusivo, englobando todos os Amniota ou, quem sabe, até mesmo todos os Craniata.

2 – O homem é o único animal que possui cultura.

Mais uma vez, pegue qualquer livro que tenha “etologia” escrito na capa. Cultura (ou seja, transmissão de informações de geração a geração por meios extra-genéticos) é um fenômeno extremamente comum entre os animais ­— incluindo o homem, obviamente. Desde ensinar o uso de ferramentas para quebrar sementes até mostrar ao filhote quais espécies são perigosas, passando por aprender quais frutas procurar ou as diferentes variedades de canto, os exemplos de transmissão cultural são inúmeros.

3 – O homem é o único animal que faz sexo por prazer.

Que é bem semelhante a essa outra:

4 – O homem é o único animal que mata sem ser para se alimentar.

São enunciados de quem não tem muita familiaridade com a zoologia ou mesmo de quem nunca sentou para assistir uns dois ou três episódios de qualquer documentário do David Attenborough! Falando aqui apenas de mamíferos, porque não quero falar de esponjas ou de poliquetos: mamíferos matam por outras razões que não a alimentação, por questões territoriais por exemplo, ou por lutas dentro do grupo, por razões aparentemente inexistentes ou até mesmo por “diversão”, se assim quiserem definir. Da mesma forma, mamíferos em geral sentem prazer e o prazer guia toda uma série de comportamentos.

5 – O homem é o único animal que possui linguagem.

Também não, mas aqui a coisa começa a ficar um pouco melhor. Tudo depende de como se define linguagem. Se você define linguagem como qualquer forma de comunicação, entre emissor e receptor, de uma unidade semântica, vou ter que discordar. Mas se estivermos aqui falando de linguagem oral com uma gramática universal neurologicamente determinada, agora sim penso que já estamos próximos de algo que seja verdadeiramente uma autapomorfia dos seres humanos (para boa parte dos etólogos).

Perceba que o problema não é afirmar que o ser humano é um animal único, isso está para lá de óbvio. O problema consiste em, ao tentar definir uma autapomorfia comportamental do ser humano, cometer uma série de erros e injustiças em relação aos outros animais (e em especial aos outros mamíferos).

Alguns podem tentar deixar a diferença bem mais clara e evidente:

6 – O homem é o único animal capaz de construir um laptop.

Ah, agora está perfeito… Mas espere aí! O “homem” aqui se refere à população humana, à espécie humana, não a um indivíduo em particular. Eu não faço a menor ideia de como se constrói um transistor, nem sei como fazer circuitos integrados, na verdade nem me lembro mais da fórmula da voltagem, da amperagem ou da resistência. Será, então, que eu posso mesmo afirmar que “o homem é o único animal capaz de construir um laptop”?

Quanto mais eu penso sobre o assunto, mais chego à seguinte conclusão:

7 – O homem é o único animal que diz que o homem é o único animal capaz de x.

Substitua x
pelo que você quiser.

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