Uma Estrela no Gume da Navalha

Um famoso episódio da mitologia grega conta-nos que Teseu, um herói ateniense, foi enviado, com vários dos seus conterrâneos, para Creta para serem sacrificados ao Minotauro, um monstro parte homem parte touro, mantido no interior de um labirinto pelo rei Minos. Ariadne, filha de Minos, apaixonou-se por Teseu e ajudou-o dando-lhe uma espada e segurando um fio à entrada do labirinto. Teseu matou o Minotauro e conseguiu escapar seguindo o fio que o ligava à princesa. O ateniense levou-a consigo, mas o romance durou pouco e eventualmente abandonou-a na ilha de Naxos. Ariadne acaba por casar com Dionísio, deus do vinho e das festas, que lhe oferece uma coroa como presente de casamento. É essa coroa que vemos representada na constelação da Coroa Boreal, proeminente no céu primaveril.

Teseu e Ariadne à entrada do labirinto. Pintura de Richard Westall, 1810.

Teseu e Ariadne à entrada do labirinto.
Pintura de Richard Westall, 1810.

A constelação tem inúmeros pontos de interesse, mas neste artigo falarei apenas de uma “estrela” que poderá estar prestes a fazer algo de interessante. Chama-se T Corona Borealis (T CrB) e encontra-se a uma distância de apenas 2500 anos-luz. O nome advém do facto de se tratar de uma estrela de brilho variável, uma nova recorrente mais precisamente, o que quer dizer que tem erupções regulares durante as quais se torna mil vezes mais luminosa. As últimas erupções observadas ocorreram nos anos de 1866 e 1946.

A constelação da Coroa Boreal e a localização da T Corona Borealis. Crédito: Sky&Telescope.

A constelação da Coroa Boreal e a localização da T Corona Borealis.
Crédito: Sky&Telescope.

A “estrela” é na realidade um sistema binário formado por uma gigante vermelha e uma anã branca com um período orbital de 227 dias. As erupções resultam da fusão descontrolada do hidrogénio na superfície da anã branca. O gás acumula-se na superfície da anã branca pois a gigante vermelha é tão grande que excedeu o tamanho do seu lóbulo de Roche. O lóbulo de Roche é uma superfície imaginária que define a região de domínio gravitacional de uma estrela num sistema binário. Parte do material que escapa do lóbulo de Roche da gigante vermelha é assim capturado pela gravidade da anã branca e forma um disco que rodeia a anã branca, acabando por se acumular na sua superfície.

Uma anã branca captura plasma rico em hidrogénio de uma companheira cujo tamanho excede o seu lóbulo de Roche.

Uma anã branca captura plasma rico em hidrogénio de uma companheira cujo tamanho excede o seu lóbulo de Roche.

Devido à intensa gravidade superficial da anã branca, o hidrogénio é comprimido e aquecido até atingir cerca de 20 milhões Kelvin, altura em que se inicia a fusão deste elemento. A reacção é descontrolada e em poucos segundos todo o hidrogénio depositado na superfície da anã branca, parcialmente processado em novos elementos, é atirado para o espaço com velocidades que atingem vários milhares de quilómetros por segundo. A energia libertada na explosão aumenta temporariamente a luminosidade do sistema por um factor de 50 a 100 mil vezes. A anã branca permanece intacta e o processo de captura de material a partir da companheira recomeça de novo. A frequência com que estes episódios explosivos acontecem depende da gravidade superficial, e portanto da massa, da anã branca. Na maior parte destes sistemas, as anãs brancas são pouco maciças pelo que o intervalo entre erupções é de muitos milhares de anos — as chamadas novas clássicas. Existem no entanto sistemas mais raros, com anãs brancas mais maciças, quase no limite de Chandrasekar de 1.4 massas solares, em que as erupções são mais comuns — as novas recorrentes como a T CrB.

Uma nova é o resultado de uma explosão nuclear na superfície de uma anã branca. A explosão deve-se à fusão explosiva do hidrogénio aí acumulado ao longo de milhares de anos, proveniente de uma estrela companheira. Numa nova recorrente, a anã branca é tão maciça que a pressão e temperatura necessárias à fusão do hidrogénio são atingidas ao fim de algumas décadas apenas, dando origem a erupções mais frequentes mas menos luminosas. Crédito: NAOJ.

Uma nova é o resultado de uma explosão nuclear na superfície de uma anã branca. A explosão deve-se à fusão explosiva do hidrogénio aí acumulado ao longo de milhares de anos, proveniente de uma estrela companheira. Numa nova recorrente, a anã branca é tão maciça que a pressão e temperatura necessárias à fusão do hidrogénio são atingidas ao fim de algumas décadas apenas, dando origem a erupções mais frequentes mas menos luminosas.
Crédito: NAOJ.

Desde Fevereiro de 2015 que a luminosidade do sistema tem vindo a aumentar consistentemente, de uma magnitude média de 10.2, que manteve durante 69 anos, até à magnitude 9.2 que apresenta actualmente. A sua luz está também a tornar-se mais azul. Este comportamento é semelhante ao que exibiu pouco antes da última erupção, pelo que os astrónomos pensam que a T CrB poderá fazer algo de interessante muito em breve. É importante ter em conta, no entanto, que estas erupções duram apenas alguns dias após o que a estrela volta à luminosidade normal. É preciso portanto estar alerta, reagir rápido e esperar que a meteorologia coopere se quiser observar este evento raro.

A próxima erupção da T CrB poderá mesmo transformar-se num verdadeiro jackpot astronómico pois, devido à massa elevada da anã branca, é possível que a acumulação de hidrogénio na superfície despolete mesmo a fusão explosiva do carbono no seu interior, provocando uma explosão termonuclear que a destruiria por completo — algo que os astrónomos chamam de supernova de tipo Ia. Nesse caso, em vez de uma erupção breve de alguns dias até à magnitude máxima de 2, o sistema atingiria um pico de magnitude -10, rivalizando com a Lua, e competiria com Vénus durante vários meses.

(Referências: Sky & Telescope)

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