Vacina mRNA provoca problemas cardíacos?

Há uns dias atrás, um amigo meu, professor universitário na área da saúde, enviou-me este artigo, que anda a ser fortemente partilhado em websites negacionistas.
Supostamente, este estudo prova que existe um enorme aumento de problemas cardíacos em pessoas que tomam uma das vacinas feitas com tecnologia mRNA (da Pfizer e da Moderna).

Afinal, a editora e a revista são credíveis.
Por isso, o que se passa aqui?

Pelo que se lê no Abstract, este estudo foi feito em 566 pessoas, com idades entre 28 e 97 anos.
O estudo parece ter sido feito durante 8 anos, com registos a cada 3 a 6 meses.

E os resultados parecem mostrar um incremento de 25% na probabilidade de ter problemas cardíacos, nomeadamente da Síndrome Coronária Aguda (ACS). Ou seja, 1 em cada 4 pessoas poderiam passar a sofrer de problemas cardíacos. O que é um aumento dramático!

Afinal, o que se passa aqui?

Ora, fiz uma análise atenta ao artigo, e algumas coisas “saltaram-me” à-vista.

Por exemplo, a primeira palavra do Abstract (do título) é Mrna.
Como toda a gente sabe, escreve-se mRNA.
Esse erro até poderia ser insignificante, se não existissem depois pelo Abstract outros erros similares, o que me diz que não existiu atenção (falta de profissionalismo) na escrita do Abstract. Ou então, não sabiam mesmo escrever essas palavras da forma aceite por todos (falta de competência)…
Aliás, os erros em conjunto são típicos em “escrita de net”, sobretudo em websites negacionistas e conspirativos. Não são comuns em locais científicos, e muito menos em artigos científicos, que são revistos por muitos olhos.

Outra coisa que me saltou à-vista foi a existência de um só autor. Porque só um autor?
É muito estranho, um estudo científico não ter sido feito por várias pessoas, vários investigadores.
Mesmo existindo um investigador-principal, existe sempre uma equipa a trabalhar com ele/a, e todos esses nomes depois são incluídos no artigo, incluindo no Abstract, porque todos contribuíram para o estudo.
Atualmente, existir um estudo científico feito por uma só pessoa é muito raro, quase inexistente. É muito estranho…

Depois, fui ver quem era o autor…

Steven Gundry é um médico cardiologista. Foi cirurgião na década de 1990.
O problema é que ele deixou essa vida científica para trás, quando percebeu que a pseudociência lhe permitia ganhar muito mais dinheiro.
Por exemplo, em 2002, passou a ser professor numa universidade religiosa: da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Ao utilizar a religião para as suas alegações, passou a ser muito bem sucedido como “nutricionista”: passou a vender suplementos alimentares para “curar tudo”.

Por exemplo, a sua grande “teoria” (na verdade, ideia disparatada sem quaisquer evidências), é que as proteínas lectinas provocam a maior parte das doenças nos humanos.
Por isso, passou a vender suplementos dietéticos que supostamente combatem as lectinas, de modo às pessoas se livrarem de todas as doenças.
Obviamente, isto é pseudociência, uma vigarice.

Resumidamente, ele era cientista, médico.
Deixou de o ser, quando percebeu que vender tretas lhe dava mais dinheiro, utilizando a crendice e ignorância das pessoas para isso.

Uma das coisas mais interessantes sobre ele é que Steven Gundry – que é o único autor do tal “estudo” – trabalha para a vigarice da Goop, empresa de Gwyneth Paltrow, que, como já mostramos em diversos artigos (aqui), vende imensos produtos que são pura charlatanice.

Uma outra coisa estranha é que é só um Abstract.
Ou seja, não há qualquer artigo associado.
E, como é somente um Abstract, não teve peer-review, revisão por pares, avaliação da comunidade científica.

Assim, neste momento, é o mesmo que somente uma opinião.
Porque não existem dados que se possam consultar.

A informação pública disponível (os únicos dados que temos), mostram que a amostra é pequena (somente 566 pessoas).
E não dizem qual é a taxa de pacientes por faixa etária: por exemplo, se 90% das pessoas tiverem acima de 60 anos, é normal que tenham mais problemas cardíacos (e não só). Esta e outras informações essenciais não são disponibilizadas.

Além disso, o Abstract fala de um estudo de 8 anos… o que é muito antes de aparecer a COVID-19!
Logo, esta é uma contradição evidente: isto não poderia ter nada a ver com estas vacinas que só apareceram em 2021.

Aliás, se o autor queria estudar estas vacinas na população, tinha uma amostra de centenas de milhares de pessoas que tomaram uma vacina mRNA neste ano.
Não apresentava certamente uma amostra tão pequena de somente 566 pessoas.

Por outro lado, onde está o grupo de controlo?
Quando se fazem estas experiências, existem dois grupos: um com vacina e outro sem ela, para se ver os efeitos que existem num grupo de pessoas e que não existem no outro grupo.
Mas aqui não se fez nada disso, a acreditar no que é dito no Abstract.
Por isso, é uma experiência muito mal feita…

Adicionalmente, olhando para os resultados, parecem mostrar somente que a vacina teve uma resposta imunitária.
Como isto se compara com a pessoa ser infetada com o vírus? Provavelmente, esta era a comparação mais importante. Um grupo de pessoas que tivesse sido infetada com o vírus, quantas delas ficariam com problemas cardíacos? Se fosse metade delas, então a vacina seria benéfica (a acreditar nos resultados expostos no Abstract).

Existem vários outros problemas, que podem ler aqui.

Com todas estas questões na minha cabeça, continuei a pesquisar…

E encontrei este gráfico feito pelo Dr. Ian Musgrave (biólogo e investigador médico), que mostra que os valores expostos no Abstract dão como resultado que as vacinas não têm influência no ACS.
Ou seja, as alegações feitas no Abstract estão em desacordo com os resultados expostos no mesmo Abstract.

Crédito: Ian Musgrave

Então o que se passa?

O próprio journal, após toda a polémica em torno deste Abstract, explicou o que se passou, aqui.
Isto foi só um poster numa conferência (como dezenas se vêem em conferências científicas) num corredor.
É só baseado em evidências anedóticas – ou seja, dados baseados no testemunho de algumas pessoas, nada mais.
Não existe qualquer revisão de pares – avaliação científica.
Por isso é que não foram providenciados dados: só o Abstract num poster. Porque não existem dados, só estórias contadas por pessoas.

Outra coisa importante é que da amostra de 566 pessoas, todas elas são pacientes cardíacos.
Ou seja, todas as pessoas já tinham problemas cardíacos pré-existentes (antes do “estudo”), por isso é normal que continuem a ter…
O “estudo” não foi feito com pessoas aleatórias, da população em geral. Não.
O “estudo” foi feito com pessoas que já tinham esses problemas.

Era o mesmo que eu fazer um estudo com 30 homens carecas.
Depois, chovia.
No dia seguinte a ter chovido, eu ia perguntar às pessoas se estavam carecas. Eles obviamente diziam que sim.
Então, eu concluía que foi a chuva que os tornou carecas!

Curiosamente, o investigador biomédico Lander Foquet esteve na conferência e viu o poster com o Abstract.
Podem ver o que ele diz sobre este assunto, nesta thread.

Ele até incluiu o poster completo, com o Abstract, os gráficos apresentados, etc, numa sucessão de fotos, que expôs na sua conta de Twitter (em cima).

O que se vê?

Que a página de referências ficou em branco: ou seja, nada do que ele diz está assente em conhecimento, mas são sim só ideias dele, desconexas de tudo o resto.

Que ele se apresenta como empregado do International Heart and Lung Institute, que realmente parece uma instituição credível.
Mas afinal o denominado Instituto Internacional do Coração e dos Pulmões, é só uma clínica/loja de vender produtos dietéticos numa esquina em Palm Springs, Califórnia, para os ricos e ignorantes gastarem o seu dinheiro.

Também bastante informativas foram as últimas palavras que ele colocou no poster: as pessoas devem tomar os suplementos vitamínicos Quercetina, que ele vende, de modo às pessoas se sentirem melhor de saúde.
Aliás, o próprio investigador que também esteve presente na conferência disse que ele fez mesmo isso: o Gundry pôs-se a vender suplementos dietéticos, como se isso fosse curar a COVID-19.

Por fim, apesar dele esconder essa informação no poster, ele é patrocinado pela empresa Vibrant Wellness, de suplementos dietéticos e pseudo-medicina, que tem tido imensas queixas por charlatanice.

Basicamente, tudo isto é uma parvoíce.

O “estudo”, na verdade, é somente um poster com 319 palavras, baseado em testemunhos de pacientes com problemas no coração, com o objetivo de vender suplementos dietéticos que nada beneficiam as pessoas, mas que dão muito dinheiro a ganhar aos pseudos.

Conclusão: é uma trafulhice criada para enganar as pessoas.

2 comentários

    • Carlos Morais on 02/12/2021 at 16:34
    • Responder

    Para se tirarem conclusões válidas são necessários estudos epidemiológicos alargados e ter em conta uma série de factores na análise, como no estudo que deixo no link abaixo. Como a vossa publicação refere, a amostra não valida as conclusões retiradas e veiculadas por este pseudo e outros.

    O covid19 e despoletar o medo das vacinas tem rendido uma mina a estes oportunistas no mundo todo. Infelizmente, muitas pessoas não compreendem nem verificam o que lêem e propagam a desinformação que gera desconfiança, dúvidas na vacinação e até pânico. E vão atrás de soluções de profilaxia sem sentido, pondo em risco a saúde e a vida, muitas vezes.

    https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/70/wr/mm7035e5.htm?s_cid=mm7035e5_x#F2_up

    • Ademir Freitas Dias on 02/12/2021 at 05:06
    • Responder

    Pelo visto nunca conseguiremos separar ciência e charlatanismo. É uma luta quase impossível de vencer. Os charlatães não tem vergonha nenhuma e os trouxas continuam a aumentar na população. Entre outras, detesto a tal homeopatia.

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