Comunicação científica durante a pandemia

Crédito: Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa

O professor doutor, e médico, António Vaz Carneiro deu uma entrevista muito interessante na revista Sol.
Podem ler a entrevista, aqui.

Alguns excertos excelentes:



“Se nós não soubermos o que é uma taxa, se disser que a taxa de infeção da COVID-19 baixou de 13% para 10% ninguém percebe o que estou a dizer.
As pessoas ficam com uma vaga ideia e tecem as suas considerações em função disso.

Se perguntasse à maior parte das pessoas como interpretam o facto de uma vacina ser 95% eficaz, dirão ‘é fácil: se 100 doentes apanhavam COVID-19, vacinando-os só apanham cinco’, quando não é nada disso.

Pensando por exemplo num ensaio da Pfizer: olharam para perto de 43 500 pessoas e dividiram-nas em dois grupos: 21 700 receberam as duas doses da vacina e as outros um placebo. Ao fim de dois meses de seguimento, os não vacinados tinham 162 infeções, uma incidência de 162 casos por 21 700, enquanto do outro lado eram oito casos por 21 700. Portanto houve uma redução de 95% da incidência nos vacinados.
O que é que isto nos diz? Duas coisas. Que a incidência é relativamente baixa nos vacinados mas que as pessoas vacinadas também se infetam, infetam-se é menos.
Claro que depois temos resultados importantes na redução de internamentos, severidade, mas a pessoa vacinada continua a ter risco. Qual é o risco? Oito em 21 700. E isto é alto ou baixo? Baixo.
Por exemplo, imaginemos o estádio da Luz, que leva cerca de 60 mil pessoas, mais ou menos três vezes esta amostra. Se as condições fossem idênticas às do ensaio, ao fim de dois meses, se nenhuma pessoa do estádio fosse vacinada, teríamos 480 casos de COVID-19. Se vacinar todas as pessoas, são 24 casos no mesmo período.
Avaliar o risco em função deste tipo de dados, quando são ditos de forma abstrata, é difícil de transmitir à população e de compreender.”



“Mesmo antes da pandemia já havia enormes mitos, crenças terríveis em torno da saúde que criam uma enorme confusão.
E agora tivemos o mesmo problema: não só as pessoas não estão muito preparadas para entender estimativas probabilísticas de doenças como as pessoas que comunicam não comunicam bem e juntam-se todas essas crenças e mitos, de que as pessoas são vacinadas e ficam cheias de eletromagnetismo, etc.
E é natural: seria estranho que este massacre que foi feito ao longo de ano e meio em todo o mundo não trouxesse este lado de loucura, em que as pessoas inventam a torto e a direito coisas, o que já acontecia.”

“As pessoas acreditam em coisas extraordinárias, é irresistível.
Na Idade Média pensava-se que os trovões eram a cólera de Deus. Vieram os cientistas e disseram “não, não, é a eletricidade”. Fica-se muito contente mas ao mesmo tempo um pouco nostálgico: não é maravilhoso viver num mundo em que Deus fala connosco através de uma trovoada?
Foi como quando Hipócrates e Galeno há 25 séculos definiram que aquela coisa que esta senhora tem na perna é uma doença, não é uma maldição de Deus e deve ser um médico a tratá-la e não um sacerdote.
Gostamos de pensar que somos muito avançados mas muitos dos nossos medos são medos primordiais. E isso aqui exacerbou-se.
Não é o medo da doença cardiovascular ou da alteração climática que vem mais tarde, é o imediato, invisível e que ataca quando menos esperamos.”



“Vivemos uma situação de tal modo singular que as opiniões técnicas e científicas da COVID-19 estão revestidas de um lado pessoal e emocional que não estamos habituados normalmente a ver.”



“O que sabemos é que muito provavelmente o coronoavírus vai-se transformar numa doença que teremos todos os invernos, em paralelo com a gripe.”

“É uma doença mais grave do que a gripe, não só porque mata imediatamente muito mais gente mas também porque temos efeitos crónicos.
A gripe não tem efeitos crónicos. Alguns doentes ficam com aquilo a que chamamos o síndrome pós-viral, com um cansaço extremo, alterações neurológicas mas não é habitual, é raro.
Aqui parece ser uma percentagem significativa dos doentes. Algumas séries chinesas falam de 20% a 25% de doentes com COVID longo, outras séries europeias falam de 10% a 13% de pessoas que ficam muito afetadas, acima de tudo com alterações neurológicas de compreensão, raciocínio, memória.”



” (…) o facto é que de repente houve mais dinheiro para a COVID-19 do que para qualquer doença em toda a história da humanidade. Nunca se tinha investido tanto dinheiro no estudo de uma doença.
A última vez que vi estava estimado em 90 biliões de dólares (77,9 mil milhões de euros).
E muito deste dinheiro foi dinheiro público!

No cancro ou na malária gasta-se todos os anos uma fração disso.
Até morrer nunca deixarei de ter uma frustração muito grande porque gostaria de meter esse dinheiro naquilo que mata verdadeiramente as pessoas. Estou convencido de que com 90 biliões de dólares todos os anos, ao fim de cinco a dez anos se curava a maioria dos cancros. Hei de ir para a campa com esta frustração.

[Se fosse eu, tinha colocado este dinheiro na COVID], mas temos de conseguir ver outras prioridades.

A COVID-19 matou 5 milhões de pessoas.
As doenças cardiovasculares matam 17,9 milhões de pessoas por ano, um terço das mortes globais.

Com o mesmo dinheiro da COVID-19 podíamos curar a maioria dos cancros.

Mas o que é que podemos concluir: quando há dinheiro, os resultados aparecem.
A COVID-19 teve vacina em seis meses. A indústria farmacêutica é extraordinária, é só uma questão de financiar os estudos.

Agora houve um grande desvio das outras áreas e nos próximos anos temo que haja menos inovação nas doenças cardiovasculares, no cancro, nas doenças neurológicas, nos antibióticos.”



“No caso das vacinas de mRNA, diz-se no entanto que com o avanço dado pela COVID-19 pode haver novas soluções no caso do VIH. E do cancro também, sem dúvida.
Mas o dinheiro não estica. Houve um momento no ano passado em que 98% dos ensaios clínicos estavam parados por causa da COVID-19.”

“Neste momento preocupa-me mais as doenças cardiovasculares e o cancro.
Este inverno preocupa-me que tenhamos gripe mais agressiva.”



“Mesmo nas escolas, há muitos estudos que mostram que as crianças ficaram mais perturbadas do que podemos crer.
A máscara não deixar ver a boca, por exemplo, causa até défices de aprendizagem ao nível da linguagem, o miúdo não consegue perceber o que fazer para dizer cavalo. Se os skills de linguagem estiverem atrasados, a aprendizagem é atingida.”

“(…) vai haver milhares de teses, da antropologia, das ciências sociais. Acho que o impacto global da doença foi modesto, mas há um impacto social enorme.”



Leiam a entrevista muito interessante, deste médico que é crítico dos confinamentos, aqui.

Da minha parte, os meus olhos “saltaram” logo que vi a inclusão do Estádio da Luz na entrevista 🙂
O que prova aquilo que é dito na entrevista: o meu lado pessoal e emocional sobrepôs-se aos argumentos científicos.

Crédito: José Sena Goulão / Lusa, a 29 de Outubro de 2020

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