Argumentação religiosa

O último artigo fez-me pensar: as pessoas têm crenças, e têm todo o direito de ter crenças pessoais. Mas a partir do momento em que, conscientemente, decidem expôr essas crenças publicamente, têm obviamente que assumir que essas crenças vão ser expostas ao escrutínio público. E aqui vem o problema social: as pessoas normalmente confundem a crença com os argumentos utilizados para a defender.

As pessoas têm direito a ter crenças. Mas se as defendem publicamente, têm que utilizar argumentos minimamente racionais e consistentes. Quando não o fazem, são criticadas.
O problema é que muitas vezes os crentes confundem as críticas aos argumentos utilizados para as suas crenças como se fossem uma crítica a si próprios.

Os argumentos podem, e devem, ser criticados, independentemente das pessoas (como no caso de Anselmo).

Vem isto a propósito de Lili Caneças.
Lili Caneças é, provavelmente, a mais conhecida socialite portuguesa.
De toda a sua vida, bastante preenchida, provavelmente aquilo que ficou mais presente na memória coletiva foi a sua frase filosófica: “Estar vivo é o contrário de estar morto”.

Recentemente, pelos vistos ela deu uma entrevista na televisão, num programa da tarde da TVI.
Na entrevista, ela disse: “Acredito em Deus e tenho provas que existe“. E quais são as provas? No dia anterior, ela estava “sem voz”, e no dia seguinte, já conseguia falar.

Ora, isto é um péssimo argumento.

Crédito: William Blake, Dickinson Gallery; via wikipedia.

Quando, numa frase, se consegue trocar um nome por “Pai Natal” ou “Unicórnio Voador Invisível”, então isso quer dizer que não se está a defender racionalmente qualquer ideia.
Neste caso, eu também poderia dizer: “Eu tenho provas que o Pai Natal existe. Porque ontem estava sem voz e hoje já consigo falar.” Isso prova a existência do Pai Natal? Claro que não! Isso nada nos diz sobre a existência do ser. Só diz que demos muita relevância a algo que nos aconteceu pessoalmente, e a seguir criamos um cenário fantasioso na nossa cabeça para tentarmos explicar aquilo que racionalmente nem sequer tentamos compreender. Ou seja, esse argumento diz muito sobre nós, mas nada diz sobre o ser em si próprio.
O argumento é, assim, falacioso.

Como é um argumento sobre nós próprios, serve só para nos fazer sentir bem: sentimo-nos especiais, por acharmos que alguém muito poderoso cuida de nós.
É o eterno geocentrismo psicológico: as pessoas continuam a achar que são muito especiais no Universo, que estão num planeta que é o centro do Universo (que é o centro da atenção de alguém). O geocentrismo persiste, assente em crenças religiosas, independentemente dos factos que o Universo nos apresenta (de que somos irrelevantes no Universo).

Além disso, para os próprios crentes, este tipo de argumentos devia ser visto como um insulto a Deus: supostamente Deus é todo-poderoso para curar dores de garganta, mas nunca é poderoso o suficiente para evitar essa dor de garganta inicialmente. Isto é fazer de Deus, um ser pequenino e mesquinho, que tem poderes limitados e que só intervém se as pessoas lhe rezarem (ou pagarem).

Por outro lado, temos o exemplo do jardineiro no post anterior: “Qual a diferença entre um jardineiro invisível, intangível e eternamente elusivo, de um jardineiro imaginário, ou de um jardineiro que não existe?!”
Claramente não existem diferenças.
Para nós, um ser que não existe tem as mesmas qualidades de um que imaginamos. Consequentemente, a única coisa que existe é a nossa imaginação, e não o ser em si.

Por fim, este género de argumentação pública leva a conceções erradas sobre a definição de certas palavras.
Uma “prova” deve ser uma evidência muito forte, objetiva, facilmente comprovável por outras pessoas em qualquer local do mundo e em qualquer era. Uma prova não é algo subjetivo, que só a pessoa “sente” internamente. Confundir os termos publicamente, leva a uma maior ignorância das pessoas: leva a que as pessoas sejam enganadas sobre o que os termos querem dizer (o mesmo se passa em relação ao termo “teoria“, por exemplo).

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