Teorias da conspiração e responsabilidade epistemológica – CC(14)

Na décima quarta aula do Crash Course de Filosofia debruçamo-nos sobre a responsabilidade que temos por termos as crenças que temos.

Em 1998 foi publicado um estudo que indica haver uma correlação entre vacinas e autismo. O resultado do estudo não era válido, a correlação não existia, mas ainda assim o alarmismo propagou-se e as consequências ainda se fazem sentir 25 anos depois, com doenças que tinham sido erradicadas com a vacinação a voltar (como o sarampo). Nós, que sabemos isto, que responsabilidade epistemológica temos? Isto é, que responsabilidade temos tendo em conta que dispomos deste conhecimento?

O mundo está cheio de pessoas que têm crenças injustificadas e sem base em qualquer evidência factual. Pior: não só têm estas crenças como ainda encorajam outras pessoas a partilhar das suas crenças. Um exemplo são aqueles que acreditam em teorias da conspiração.

De acordo com o filósofo e matemático inglês W.K. Clifford (1845-1879):

“It is wrong, always, and, everywhere, for anyone, to believe anything upon insufficient evidence.”

“É errado, sempre e em qualquer lado, para qualquer pessoa acreditar em algo baseado em evidências insuficientes.”

Clifford dá-nos o exemplo de um dono de um barco de transporte de passageiros: é errado que este proprietário tenha a crença que o barco está em condições para transportar passageiros sem que esta crença seja baseada numa inspecção técnica da condição física do barco. Se existir um acidente, o proprietário do barco é responsável e culpado, claro. Clifford vai mais longe: mesmo que não haja um acidente, o proprietário é na mesma culpado: culpado de ter uma crença injustificada que poderia ter conduzido à morte de pessoas. Trata-se de uma culpa epistemológica pois o proprietário falhou na sua responsabilidade de se informar devidamente.

“Será que posso acreditar no que quiser desde que isso não coloque ninguém em perigo?

Clifford acha que não, pois considera que não existem crenças privadas. Isto é, as pessoas tendem a partilhar as crenças que têm com o seu círculo social (de forma explícita comunicando-as ou implícita nos seus comportamentos) o que acaba por fazer com que a crença se propague e conduza outros também a adoptar essas mesmas crenças. Um exemplo disso é a crença em Deus que, de acordo com Clifford, é errada, pois uma vez que a existência de Deus não pode ser provada, isso significa que se trata de uma crença cega, a qual, por sua vez, condiciona o sujeito a potencialmente ignorar factos e argumentos, levando-o a viver uma vida pelo menos parcialmente impensada e injustificada. Isto é, mesmo que a crença em si possa não magoar ninguém directamente, o comportamento em si abre um precedente perigoso que pode condicionar a pessoa a tomar outras crenças injustificadas (como seja acreditar que Deus tem um papel “regulador” na vida e por isso deixar de lado responsabilidades que não são de um ser imaginário).

O filósofo e psicólogo norte-americano William James (1842-1910) discordou. A questão, do ponto de vista deste, é que quando se adopta uma crença há um conjunto de opções que se tomam e a natureza destas opções determinam se a crença é moralmente aceitável ou não. James distinguiu vários tipos de opções:

  • Opção viva: uma opção que vemos como viável. Em contraste, uma opção morta é algo que diríamos “nem morto”.
  • Opção forçada: há certos tipos de decisões que somos obrigados a fazer. Sair ou não sair de casa é uma opção deste tipo, pois não há uma terceira opção. Em contraste, há outras opções que não são forçadas, como fazer uma sandes com queijo ou fiambre. Não é forçada porque até podemos nem fazer a sandes.
  • Opção relevante: uma opção que é definida como sendo uma decisão que possa alterar a vida de forma radical. Em contraste, uma opção trivial é uma opção que à partida não faz diferença na nossa vida.

Para James estes critérios são importantes para avaliar se uma crença cega é errada ou não. Para ele uma crença cega é aceitável se for uma decisão viva, forçada e relevante. Segundo James, a crença religiosa verifica todos estes critérios. Isto é: qualquer pessoa consegue à partida ver-se a acreditar em Deus; é uma opção forçada porque ou se acredita ou não; e é relevante porque é uma opção que pode de facto afectar a vida do sujeito (assumindo que o que a religião professa seja verdade).

Não obstante, James concorda com Clifford no ponto de que se for possível encontrar evidências, então o sujeito tem a obrigação de as encontrar.

Pessoalmente, discordo de James. Ainda que possa concordar que a crença em Deus é uma opção viva (não me é impossível imaginar a crença), forçada e relevante, não me parece que estes três critérios tornem a crença em Deus aceitável. Por outro lado, também não é claro para mim que a crença em Deus seja moralmente errada, pois não é necessariamente verdade que o precedente de ter uma crença cega tenha que condicionar o indivíduo a ter outras. Isto é, do meu ponto de vista é aceitável acreditar-se em Deus caso o sujeito consiga reconhecer que se trata de uma crença não fundamentada.

Na aula afirma-se ainda que nos devemos abster de julgar seja o que for até que tenhamos feito uma investigação sobre o assunto. Infelizmente, parece-me que esta noção é bastante redutora. O problema está obviamente em saber fazer a investigação e saber quando é que a mesma está concluída. Não existe um mecanismo automático de validação das nossas conclusões. O que concluirmos pode estar errado. Ou seja, mesmo que toda a gente siga esta máxima não há garantias de que tenhamos uma sociedade mais bem informada! Um pré-conhecimento sólido e uma sagacidade crítica ajudam, mas não garantem a “verdade”. Assim, é importante reconhecer que a nossa responsabilidade epistemológica exige uma investigação contínua, inacabável e humilde.

“E o que me diz sobre a sua formação académica?”
“Acredito mais em imaginação.”
Einstein escreveu que a imaginação é mais importante que o conhecimento, mas… sem conhecimento é difícil de dar utilidade à imaginação!

4 comentários

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  1. Não percebi muito bem as opções de James. Não consigo perceber os exemplos práticos para cada caso.
    E não entendi quais seriam para James as crenças não aceitáveis. Pensei que o “limite” dele fossem as crenças relevantes, porque as triviais aparentemente não influenciam por isso aceitam-se também.

    Quanto à pergunta inicial, eu respondo facilmente: não sou responsável pelas crenças absurdas dos outros 😛
    Cada um é responsável pelas suas crenças e comportamentos 😉

    abraço!

    1. Olá Carlos,

      O ponto de James é que acreditar em Deus é algo que (1) é concebível imaginar que qualquer pessoa poderia acreditar; (2) é algo em que somos obrigados a “decidir” se acreditamos ou não; e (3) acreditar ou não é algo relevante para a vida do indivíduo. É por isso que ele considera que seja uma crença aceitável. Bastava um destes critérios não se verificar para que a crença não fosse aceitável: (1) se uma crença é algo que considerássemos “nem morto” (ou que não se colocasse), não seria aceitável/concebível ter a crença; (2) se não somos forçados a decidir a ter ou não ter a crença, para quê tê-la?; (3) se for irrelevante, porquê perder tempo a pensar nisso?

      No primeiro ponto, o ser concebível tem a ver se o indivíduo tem a hipótese teórica e prática de acreditar nessa crença. Um pássaro tem a hipótese de andar ou voar e pode optar por voar. Nós não temos essa hipótese – é uma opção morta para nós.

      Mas sim, concordo que as três coisas não são assim tão separáveis quanto isso.

      É curioso que digas que não tens responsabilidade e ainda assim dediques tanto do teu tempo a tentar atacar as crenças absurdas dos outros… 🙂 Mas bom, também não diria que há necessariamente um imperativo moral de partilha de conhecimento. É uma escolha pessoal.

      Abraço,
      Marinho

      1. Olá Marinho,

        Eu partilho porque quero, não porque ache que tenha responsabilidade nisso.
        Exemplo: eu não sou responsável pelas pessoas pensarem que a Terra é plana. Mas gosto de explicar as 3 evidências que Aristóteles, há milhares de anos atrás, já mostrava para explicar que a Terra é redonda (e que qualquer pessoa pode ver com os seus olhos).
        Ou seja, não sou responsável pelas crenças ignorantes das pessoas, mas quero ajudar as pessoas a serem menos ignorantes sobre o assunto.
        Como tu dizes, é uma escolha pessoal 😉

        Tu achas que não temos essa hipótese. Mas Flash Gordon voava. Colocava umas asitas e voava. Eu posso acreditar que é assim possível um Humano voar. Se eu consigo conceber isso, então James já punha essa hipótese como aceitável? 😉

        abraço!

        • Marinho on 13/07/2023 at 19:45

        Olá Carlos,

        “Eu partilho porque quero, não porque ache que tenha responsabilidade nisso.”
        Claro, não precisas de achar que tens responsabilidade. E o facto de alguns filósofos defenderem que tens essa responsabilidade não implica que a tenhas. Questões éticas e morais são subjectivas.

        “Exemplo: eu não sou responsável pelas pessoas pensarem que a Terra é plana. ”
        A questão não é bem seres responsável pelo que elas pensam, mas antes se tens uma responsabilidade na interacção social que podes ter com essas pessoas. Isto é, de um ponto de vista ético, “deves” partilhar o teu conhecimento com elas ou é indiferente? Mas sim, já disseste em cima que crês não ter esse dever e eu tendo a concordar.

        “Tu achas que não temos essa hipótese. Mas Flash Gordon voava. Colocava umas asitas e voava.”
        Colocar as asas é mudar a premissa daquilo que pretendia enunciar. Se preferires outro exemplo: não temos a hipótese “viva” de respirar debaixo de água (pelo menos não sem o auxílio de algo).
        Mas sim, o ser uma hipótese “viva” não tem que ser algo genérico aplicável a todos os humanos, ainda que na aplicação do conceito à questão da crença, creio que a ideia é aplicar a noção de ser “viva” a um humano genérico. Para James parece razoável assumir que em princípio qualquer humano poderia ter uma crença religiosa (o que não invalida que possa haver excepções).

        Abraço,
        Marinho

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