Quem é Deus? – CC(12)

A décima segunda aula do Crash Course de Filosofia aborda a questão da caracterização de Deus. Como é que Deus é definido e quais as consequências dessa definição?

Nesta aula fala-se em particular do Deus sobre o qual os filósofos ocidentais do passado se focaram, isto é, o Deus dos judeus, cristãos e islâmicos. Na sua definição, os teólogos pensam neste Deus como sendo “omni” em vários sentidos:

  • Omnisciente – Deus sabe tudo, não há nada que lhe escape;
  • Omnipotente – Deus tem o poder de fazer tudo, nada lhe é impossível;
  • Omnibenevolente – Deus possui uma bondade perfeita em todos os sentidos;
  • Omnitemporal e omnipresente – Deus está em todo o lado e em todos os momentos do passado, presente e futuro.

Todas estas características foram inventadas por teólogos. Nada disto vem na Bíblia ou noutro texto sagrado. Porquê defini-Lo desta forma? A ideia terá sido: Deus é perfeito e, como tal, não pode ter limitações. Quais as consequências lógicas desta definição?

Será que Deus consegue criar uma pedra tão pesada que nem Ele próprio a consegue levantar?

Este é um dos vários paradoxos que é possível extrair das definições de cima. Se nada Lhe é impossível por ser omnipotente, então Ele deverá conseguir criar uma pedra que seja impossível de levantar. Por outro lado, como é omnipotente, não deve existir uma pedra que Ele não consiga levantar…

Um outro problema que é costume mencionar é a aparente contradição entre a suposição de que Deus nos deu livre-arbítrio e o facto de se definir Deus como omnisciente. Isto é, se Deus sabe o futuro e se sabe o que vamos fazer, parece que o que vamos fazer está pré-determinado e que o livre-arbítrio é apenas uma ilusão. Ainda assim, como mencionado na aula, isto não é necessariamente uma contradição porque conhecimento e causalidade não são a mesma coisa. Por exemplo, se eu tivesse uma máquina do tempo, poderia ir ao futuro verificar o que o Putin tinha feito durante o resto da vida sem que isso implicasse que eu o forçara a fazer alguma coisa em particular.

Portanto, parece que não é possível que todos os atributos mencionados em cima possam ser verdadeiros em simultâneo. Outro exemplo: será que Deus consegue pecar?

Se é todo poderoso deve conseguir. Mas sendo omnibenevolente é incapaz de pecar. Logo, parece que a omnibenevolência impede a omnipotência.

Para alguns teólogos a forma de responder a isto é que o conceito de pecado não se aplica a Deus. Deus é que julga o que é pecado e como não tem ninguém para o julgar a Ele, então trata-se de uma não-questão. A isto contra-argumenta-se que se assim é, parece que a própria omnibenevolência deixa de ter sentido, visto que parece que o que quer que Deus faça é “bom” por definição.

 

Um outro problema surge ao considerar-se o Deus “pessoal” em que muitos acreditam. Pedir a Deus algo é uma prática recorrente no cristianismo e não só, mas que parece difícil de conciliar com as definições em cima. Se Deus sabe tudo incluindo o futuro e se tem o poder de fazer o que quiser, assim como infinita benevolência, então à partida Ele já aplica o seu poder onde o quer aplicar para o bem de todos. Isto é, Deus já terá decidido o que vai fazer no passado, presente e futuro, portanto pedir-Lhe seja o que for deve ser inconsequente. Se Deus sabe o que é o melhor, porque é que alguém haveria de Lhe tentar mudar as ideias? E porque é que Ele haveria de ser influenciado?

Dito isto, alguns teólogos argumentam que o valor do pedir não está em esperar que Deus faça alguma coisa, mas antes no efeito que isso tem em quem pede. Eu diria que isso é um efeito colateral bastante infeliz em pessoas religiosas, pois estas podem julgar que por rezarem estão com isso a fazer algo de bom sem que contudo façam de facto alguma coisa!

Para Aquinas, todos estes problemas eram resolvidos alegando simplesmente que Deus nos transcende e que não o podemos compreender. Tudo o que tentamos fazer são analogias, mas não são analogias de facto aplicáveis. (Se assim é, para quê tentar defini-Lo?)

 

Alguns filósofos modernos apontam antes para o que disse no início: a Bíblia não afirma nada disto em relação a Deus, portanto as contradições discutidas acima não têm que existir. Aliás, a julgar pelo Deus que é apresentado na Bíblia, parece um pouco óbvio de que não é um ser perfeitamente benevolente (a menos que se queira ignorar essas partes no texto alegadamente sagrado).

Na minha opinião pessoal, tudo isto é uma não-questão visto não existirem evidências de que Deus existe. Tentar caracterizar algo que não temos a capacidade de determinar se sequer existe parece-me um esforço necessariamente inglório. Ainda assim, se quisermos imaginar um Deus-omni, eu resolveria os paradoxos de cima removendo a omnibenevolência (porque Deus não tem que ser “bom” segundo a nossa moral) e definindo os outros atributos omni- como sendo capacidades que Deus tem sobre o universo, mas não sobre Ele próprio. Ou seja, para mim a resposta à primeira questão seria “não”: Deus não seria capaz de criar uma pedra que ele não conseguisse levantar.

“Hey Deus” – “Então manos?”
“Tu és omnipotente, certo?” – “Yap, sou um espectáculo!”
“Portanto és capaz de criar uma pedra que nem tu consegues levantar, certo?” – “Hahah, claro!”
“Mas então não és mesmo omnipotente, certo?” – “Não pá, eu consigo levantar a pedra.”
“Hun??” – “Eu trabalho de formas misteriosas!”

 

8 comentários

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  1. A primeira coisa que tenho a dizer é: HEREGE!!!
    (e aponto o dedo em tom acusatório) 😛 😛 😛 😛

    A segunda coisa é: “Será que Deus consegue criar uma pedra tão pesada que nem Ele próprio a consegue levantar?”
    A pergunta devia ser: será que Deus consegue pegar na Mjolnir, o martelo de Thor? 😛

    “o Putin tinha feito durante o resto da vida sem que isso implicasse que eu o forçara a fazer alguma coisa em particular” – mesmo assim, é sinal que o futuro está pré-determinado. Se eu souber como é o futuro, é porque ele já está determinado no presente.

    “omnibenevolente é incapaz de pecar.” – pode pecar por excesso de bondade!!!! 😛
    Se eu gostar tanto do meu cão, que lhe dou doces humanos constantemente, estou a ser bondoso para ele (ele quer comer isso), mas vou matá-lo (pecado).

    “Pedir a Deus algo” – as pessoas gostam de sentir algum controlo sobre as suas vidas (se rezar 3 avé marias, ganho um carro, então tenho uma sensação de controlo da situação).
    Por outro lado, é uma tentativa de manipulação: Deus não quis fazer algo, ou então quis que certa pessoa tivesse uma doença (sendo omnipotente, obviamente podia não ter querido isso), mas se eu rezar, vou tentar manipulá-lo a que ele faça o que eu quero e não o que ele quis.

    “a menos que se queira ignorar essas partes no texto alegadamente sagrado” – se ignorares 90% da Bíblia…

    “porque Deus não tem que ser “bom” segundo a nossa moral” – True. Tal como com os extraterrestres, ou até quando fazemos alegações sobre a moralidade de outras espécies, estamos sempre a basear-nos na nossa moralidade atual (nem sequer é na moralidade de há 100 mil anos atrás ou na nossa moralidade futura).

    “Eu trabalho de formas misteriosas!” – este é o argumento de escape em todas as conversas religiosas em que os paradoxos são expostos 😛

    De resto, o Aquinas tem razão: “todos estes problemas eram resolvidos alegando simplesmente que Deus nos transcende e que não o podemos compreender”.

    Conclusão: Pára de me tentar compreender! Eu funciono de forma misteriosa 😛

      • Jonathan Malavolta on 12/05/2023 at 17:46
      • Responder

      ““omnibenevolente é incapaz de pecar.” – pode pecar por excesso de bondade!!!! 😛
      Se eu gostar tanto do meu cão, que lhe dou doces humanos constantemente, estou a ser bondoso para ele (ele quer comer isso), mas vou matá-lo (pecado).”

      Rapaz, isso me lembra de quando eu era na infância e o que me tornei depois de adulto (já em idade madura; quando era adulto jovem, fazia o mesmo que na infância e na adolescência): parei de dar chocolates pros meus cães, mesmo que antes não dava muito, eram doses homeopáticas. Já tem 5 anos (estava com 41) que descobri que o cacau, do qual o chocolate é feito, contém Teobromina, que é extremamente letal para animais domésticos de pequeno a médio porte (cães e gatos, por exemplo); se o animal em questão a consumir, a probabilidade de vir a sofrer uma severa hemorragia intestinal interna (como uma espécie de alergia à Teobromina) é gigantesca. A médica-veterinária chefe do Hospital Médico-Veterinário Universitário da Universidade Pública de Natal, no Rio Grande do Norte, fez o levantamento durante 20 anos dos animais que ela e sua equipe tratavam em decorrência dessa intoxicação alimentar específica. O resultado foi publicado na revista da própria universidade em 2018 e é surpreendente: de cada 1000 animais que são internados, TODOS acabam precisando de cirurgia emergencial e urgencial; de todos estes, 999 morrem ou durante a cirurgia ou poucos minutos depois, e o único que sobrevive desse número todo acaba vindo a óbito poucos horas depois de retornar com seu dono para casa. Imagino quantos cães não corri o risco de perder para essa hemorragia durante toda minha vida. Assim que li sobre a tal Teobromina e descobri que ela é indissociável do cacau – e portanto de seus subprodutos, como o chocolate – nunca mais dei chocolate para nenhum cachorro meu e faço de tudo para que meus parentes abandonem essa prática (é mal de família).

      1. Os cães não podem comer doces dos humanos.
        https://www.portaldodog.com.br/cachorros/adultos-cachorros/alimentacao-adulto/os-caes-podem-comer-doce/

        Mesmo o açúcar da fruta, etc, apesar de natural, é prejudicial se for comido em grandes quantidades.

        E não são só os cães. Há animais que têm morrido após comerem muitas maçãs caídas no solo, por exemplo.

        O meu cão come ração… e docinhos de cães 🙂

        abraços!

    1. Olá Carlos,

      “HEREGE!!!”
      – Obrigado pelo elogio 😛

      “mesmo assim, é sinal que o futuro está pré-determinado. Se eu souber como é o futuro, é porque ele já está determinado no presente.”
      – Sim, mas isso só significa que o suposto livre-arbítrio que cada um tem está determinado. Isto é, as nossas decisões podem ser inevitáveis, mas ainda assim podem ser as nossas decisões… Mas sim, concordo que é uma noção algo estranha. A verdade é que à partida o livre-arbítrio é apenas uma ilusão e sê-lo não difere em nada de não o ser. 😀

      “Se eu gostar tanto do meu cão, que lhe dou doces humanos constantemente, estou a ser bondoso para ele (ele quer comer isso), mas vou matá-lo (pecado).”
      – Deus safa-se disso por ser omnisciente. :p
      Anyway, o papel da intencionalidade na moral de um acto é uma outra longa discussão filosófica. Há os que defendem que as consequências é que importam, assim como também há os que defendem que a intenção é que importa para definir se uma dada acção é pecado.
      Por outras palavras, há quem concorde que o “inferno está cheio de boas intenções”, enquanto outros pensam que as boas intenções não são mal vistas pelo alegado criador. 🙂

      Abraço,
      Marinho

      1. Eu, “americano”, olho para os resultados… 😉

        Concordo: de boas intenções está o inferno cheio 😛

        Deus, ao ser omnisciente, então sabe que vai matar o meu cão: é um pecado feito de forma consciente.
        Deus e o Diabo começam a assemelhar-se 😉

        abraço!

      2. Sim, no caso de Deus, sendo supostamente omnibenevolente e omnisciente em simultâneo, não creio que ele consiga pecar dessa forma. Mas bom, haverá de certo outros paradoxos que possamos encontrar. 🙂

        Abraço,
        Marinho

  2. Boa tarde. Finalmente encontro alguém que pensa extamente como eu. Inflizmente são milhões os que pensam exatamente o contrário.
    Embora vivamos no século21, muitos, culturalmente vivem na pré-história. Quando eram novos,levaram uma injeção de ideias retrógadas, dos mais chegados. Era e é a tradição, mas, caramba, podiam ao longo da vida terem aberto os olhos. Cheguei a uma conclusão à muito:quanto mais conhecimentos uma pessoa adquire,mais se afasta dos preconceitos e ideias religiosas. No entanto ouvimos no dia dia muitos quererem apenas ouvir as próprias ideias, que lhe foram e são impostas, em vez de reagirem e de se abrirem a outra realidade. E por mais tentativas que lhes mostremos que percorrem o caminho errado,mais resistências oferecem.

    1. Olá Victor,

      Obrigado pelo seu comentário.

      “Cheguei a uma conclusão à muito:quanto mais conhecimentos uma pessoa adquire,mais se afasta dos preconceitos e ideias religiosas”
      – Infelizmente, não creio que isso seja genericamente verdade, pelo menos tendo em conta que há imensos cientistas que se mantêm religiosos. Não obstante, é verdade que a tendência costuma ser a de perder a crença à medida que se aprende mais e (quase?) nunca o contrário.

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